A ocupação e o Direito Internacional Humanitário: perguntas e respostas

17-08-2004

Série de perguntas e respostas elaboradas pela equipe jurídica do CICV sobre as características da ocupação, as normas aplicáveis, como se protegem as pessoas e o papel do CICV.

  1. O que é a ocupação?  

O artigo 42 do Regulamento de Haia, de 1907, estabelece que “considera-se um território como ocupado quando se encontra colocado de fato sob a autoridade do exército inimigo. A ocupação somente estende-se aos territórios onde essa autoridade esteja estabelecida e em condições de exercê-la " .

Em virtude do artigo 2o, comum às quatro Convenções de Genebra de 1949, isto se aplica para todos os casos de ocupação de territórios durante conflitos internacionais, assim como em situações em que a ocupação do território de um Estado não encontra resistência armada.

A legalidade da ocupação está fundamentada na Carta das Nações Unidas e pelo direito conhecido como jus ad bellum . Quando existe uma situação que, de fato, equivale a uma ocupação, se aplica o direito da ocupação, independentemente de a ocupação ser ou não legal.

Conseqüentemente, a aplicação do direito da ocupação não depende de o Conselho de Segurança ter apoiado a ocupação, nem do seu objetivo, nem da classificação que ela receba, “invasão”, “libertação”, “administração” ou “ocupação”. Como o direito da ocupação baseia-se, sobretudo, em considerações de índole humanitária, sua aplicação é determinada somente a partir dos fatos que ocorrem em terreno.

  2. Quando o direito da ocupação começa a ser aplicado?  

As normas do Direito Inte rnacional Humanitário que se referem aos territórios ocupados começam a ser aplicadas quando o território fica sob o controle efetivo das forças armadas estrangeiras hostis, mesmo que a ocupação não encontre resistência armada e não haja combates.

A questão do “controle” provoca pelo menos duas interpretações diferentes. Uma delas é que existe uma situação de ocupação quando uma das partes em conflito exerce certo nível de autoridade ou de controle em um território estrangeiro. Desta forma, por exemplo, o avanço das tropas no território inimigo deve seguir o direito da ocupação já durante esta fase da invasão. Esta é a visão proposta no Commentary to the Fourth Geneva Convention do CICV (1958).

A outra interpretação, mais restritiva, consideraria que existe uma situação de ocupação somente quando uma parte em conflito está em uma posição que lhe permita exercer autoridade suficiente sobre o território inimigo de forma a poder cumprir com todas as obrigações que lhe são impostas pelo direito da ocupação. Vários manuais militares adotaram esta interpretação.

  3. Quais são os princípios mais importantes que regem a ocupação?  

Os deveres da Potência ocupante são estabelecidos principalmente na Convenção de Haia de 1907 (arts. 42 a 56), na IV Convenção de Genebra (IV CG, arts. 27 a 34 e 47 a 78), assim como em certas disposições do Protocolo AdicionaI e do Direito Internacional Humanitário consuetudinário.

Os acordos celebrados entre a Potência ocupante e as autoridades nacionais não podem privar a população do território ocupado da proteção outorgada pelo Direito Internacional Humanitário (IV CG, art. 47) e as pessoas sob proteção não poderão, sob nenhuma circ unstância, renunciar a seus direitos (IV CG, art. 8o).

As normas principais do direito aplicável em caso de ocupação estabelecem o seguinte:

  • O ocupante não adquire soberania sobre o território.

  • A ocupação é apenas uma situação temporária e os direitos do ocupante se limitam à duração desse período.

  • A Potência ocupante deve respeitar as leis vigentes no território ocupado, salvo que elas se constituam uma ameaça à sua segurança ou um obstáculo à aplicação do direito internacional da ocupação.

  • A Potência ocupante deve tomar as medidas para restabelecer e assegurar a ordem pública e a segurança, enquanto for possível.

  • Usando todos os seus meios, a Potência ocupante tem o dever de garantir e manter níveis suficientes de saúde e higiene públicas, assim como abastecer com víveres e produtos médicos a população do território ocupado.

  • Não se poderá obrigar a população de um território ocupado a servir nas forças armadas do ocupante.

  • São proibidas as transferências em massa ou individuais de pessoas, de caráter obrigatório, dentro do território ocupado ou a partir dele.

  • São proibidas as transferências da população civil da Potência ocupante para o território ocupado, independentemente de serem ou não forçadas ou voluntárias.

  • São proibidos os castigos coletivos.

  • É proibido tomar pessoas como reféns.

  • São proibidas as represálias contra as pessoas que estão sob proteção ou contra seus bens.

  • O ocupante está proibido de confiscar propriedades privadas.

  • É proibida a destruição ou apropriação dos bens do inimigo, salvo em caso de necessidade militar imperiosa durante o desenrolar do conflito.

  • Deve-se respeitar os bens culturais.

  • As pessoas acusadas de infrações pen ais serão julgadas mediante processos que respeitem as garantias judiciais reconhecidas na esfera internacional (por exemplo, a pessoa deve ser informada sobre os motivos da sua prisão, acusada por uma infração específica, e logo submetida a um julgamento eqüitativo).

  • Deve-se permitir aos delegados do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho efetuar suas atividades humanitárias. Em particular, deve-se facilitar o acesso do CICV a todas as pessoas que estão sob proteção, onde quer que se encontrem e estejam ou não privadas de liberdade.

  4. Que direitos tem a Potência ocupante sobre os bens e os recursos naturais do território ocupado?  

  Propriedade privada  

O ocupante não poderá confiscar propriedades privadas.

Os víveres e os medicamentos poderão ser requeridos para serem exclusivamente utilizados pelas forças de ocupação e seu pessoal administrativo (ou seja, não se poderão exportar para fora do território ocupado nem utilizar em proveito de pessoas que não sejam das forças de ocupação, a menos que isto seja necessário em benefício da população submetida à ocupação) e apenas se as necessidades da população civil tiverem sido levadas em conta (IV CG, art. 55).

  Propriedade pública  

A Potência ocupante poderá tomar posse de toda propriedade móvel do Estado que seja útil para as operações militares. (Regulamento de Haia, art. 53).

O ocupante não adquire a propriedade dos bens imóveis públicos no território ocupado, já que apenas atua como administrador temporário. Mesmo assim, sujeito a restrições quanto à sua exploração e uso, pode utilizar a propriedade pública, inclu ídos os recursos naturais, mas deve proteger seu valor de capital segundo as regras de exploração. (Regulamento de Haia, art. 55).

  5. Quando uma ocupação está concluída?  

Normalmente, uma ocupação está concluída quando a Potência ocupante se retira ou é expulsa do território ocupado. Todavia, o fato de que as tropas estrangeiras permaneçam presentes no território não significa necessariamente que a ocupação prossiga.

Em geral, quando a autoridade é transferida para um governo nacional e se restabelece o livre e pleno exercício da soberania, o estado de ocupação é encerrado se o governo permitir que tropas estrangeiras continuem presentes em seu território. Mesmo assim, o direito de ocupação pode voltar a ser aplicado se a situação em terreno mudar, ou seja, se o território novamente “se encontrar de fato sob a autoridade do exército inimigo” (Regulamento anexo de Haia, art. 42), isto é, sob o controle das forças estrangeiras sem o consentimento das autoridades nacionais.

  6. Qual é a situação das pessoas privadas de liberdade durante e depois da ocupação?  

Os prisioneiros de guerra são integrantes das forças armadas e de outras milícias que foram capturados e reúnem as condições estabelecidas na III Convenção de Genebra (III CG, art. 4 A (2) ). Essas pessoas gozam dos direitos conferidos pela Convenção.

Todas as outras pessoas retidas no território ocupado estão protegidas pela IV Convenção de Genebra (IV CG), salvo poucas exceções, como os nacionais da Potência ocupante ou seus aliados. Mesmo assim, as pessoas privadas de liberdade por razões relacionadas com a situação de ocupação de forma nenhuma podem ficar fora das normas consuetudinárias fundamentais que garante o artigo 75 do Pro tocolo Adicional I.

Os prisioneiros de guerra e os civis que se encontram em regime de confinamento devem ser libertados rapidamente, quando acabam as hostilidades. Mesmo assim, os acusados de infrações processuais poderão ficar detidos até que se encerre o processo penal ou até que tenham cumprido a sentença (III CG, art. 119 (5), IV CG, art. 132 (2)). Até sua libertação e enquanto se encontrem sob a autoridade do ocupante, todas as pessoas sob custódia estão protegidas pelo Direito Internacional Humanitário (III CG, art. 5 (1) e IV CG, art. 6 (4)).

  7. Qual é a base jurídica das atividades de proteção que o CICV promove a favor das pessoas privadas de liberdade durante e depois da ocupação?  

O CICV tem o direito legal de visitar toda pessoa presa em virtude de um conflito armado internacional, incluindo-se as situações de ocupação, com base nas Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais (III CG, arts. 9 e 126, IV CG, arts. 10 e 143 e Protocolo adicional I, art. 81).

Se, uma vez encerrada a ocupação, a violência continuar, as atividades de proteção do CICV poderão ter as seguintes bases jurídicas:

Nos conflitos armados não internacionais, o CICV baseia suas atividades referentes às pessoas detidas no artigo 3o, comum às quatro Convenções de Genebra (e no Protocolo Adicional II, quando aplicável). O artigo 3o estabelece que o CICV tem direito de oferecer seus serviços às partes no conflito a fim de realizar ações de socorro e visitar as pessoas detidas por motivos relacionados ao conflito.

Nas situações de violência interna que não chegam a ser conflitos armados, o CICV pode oferecer seus serviços com base em seu direito de iniciativa, estabelecido nos Estatutos do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (artigos 5 (2) (d) e 5 (3 ))



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