Presidente do CICV: "Testemunhamos um fracasso global e coletivo na proteção das pessoas civis em conflitos armados"
“Hoje, da República Democrática do Congo a Gaza, Sudão, Ucrânia e Iêmen, testemunhamos um fracasso global e coletivo na proteção das pessoas civis em conflitos armados”, diz a presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Mirjana Splojaric. Declaração para a primeira conferência internacional de acompanhamento para analisar a implementação da Declaração Política sobre Armas Explosivas em Áreas Povoadas, na terça-feira, 23 de abril de 2024, em Oslo (Noruega).
O custo humano dessas guerras, exacerbado pelo uso de armas explosivas pesadas em áreas povoadas, é inaceitável.
As armas explosivas pesadas colocam em risco todas as pessoas – crianças, mulheres e homens – e tudo – casas, escolas e hospitais – nas suas amplas áreas de impacto, muitas vezes indo muito além do seu alvo. Em contextos urbanos onde se misturam objetivos militares, civis e bens civis, os resultados são devastadores. As equipes do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no terreno viram dezenas de civis mortos ou feridos, muitas vezes com deficiências permanentes ou traumas mentais graves. As cidades são reduzidas a escombros. Casas, infraestruturas, escolas e locais culturais são destruídos. Os meios de subsistência das pessoas são aniquilados. Os serviços essenciais para a sobrevivência humana entram em colapso, deixando populações inteiras sem acesso a água, saneamento, eletricidade ou assistência à saúde – causando mais mortes e doenças, provocando deslocamentos e atrasando o desenvolvimento em décadas.
O CICV testemunhou o aumento do custo humano da guerra e das armas explosivas pesadas nos últimos dois anos. Esse custo se tornou intolerável.
É importante ressaltar que isso levanta sérias questões sobre como os Estados e os grupos armados não estatais que utilizam tais armas estão interpretando e aplicando as normas do Direito Internacional Humanitário (DIH) que regem a condução das hostilidades.
Essas normas do DIH visam proteger os civis contra os perigos mortais das hostilidades. Decorrem do princípio fundamental da distinção que exige que todas as partes em um conflito distingam sempre entre a população civil e os combatentes, e entre objetivos civis e objetivos militares. Os ataques não devem ser dirigidos contra civis ou bens civis, e os ataques indiscriminados são proibidos.
Além disso, os princípios da proporcionalidade e da precaução oferecem proteção aos civis e aos bens civis contra o perigo de serem acidentalmente feridos por ataques contra objetivos militares. Na condução de operações militares, deve-se ter cuidado constante para poupar a população civil e os bens civis. Os ataques são proibidos quando se espera que causem danos incidentais a civis e bens civis que seriam excessivos ou poderiam ser evitados ou minimizados.
E, no entanto, vemos que são feitas exceções ao DIH, privando categorias inteiras de pessoas da sua proteção. Vemos argumentos transacionais e recíprocos invocados na tentativa de justificar interpretações inaceitáveis de proporcionalidade, precauções viáveis não tomadas e outros comportamentos fora de conformidade. Vemos a necessidade militar sendo cada vez mais enfatizada em detrimento de poupar vidas civis, dando-se muito pouca atenção ao propósito protetor do DIH. À medida que as partes em conflitos armados interpretam estes princípios do DIH com maior elasticidade, estabelecem um precedente perigoso com consequências trágicas para todos.
Pelo contrário, estes princípios e normas devem ser fielmente cumpridos em todos os momentos por todas as partes em todos os conflitos armados, incluindo quando se utilizam armas explosivas em áreas povoadas.
Com relação a isso, apreciamos a Declaração Política sobre Armas Explosivas em Áreas Povoadas por ressaltar a importância do pleno cumprimento do DIH como meio de proteger civis e bens civis e de evitar, e em qualquer caso minimizar, danos civis.
Embora não exista uma proibição geral no âmbito do DIH contra o uso de armas explosivas pesadas em áreas povoadas, é muito provável que a sua utilização nessas áreas tenha efeitos indiscriminados e, dependendo das circunstâncias, as normas do DIH podem proibir tal uso. Isto sustenta o apelo de longa data do CICV e do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho a todos os Estados e grupos armados não estatais que são partes em conflitos armados para evitarem o uso de armas explosivas pesadas em áreas povoadas. Estas armas não devem ser utilizadas em áreas povoadas, a menos que possam ser tomadas medidas de mitigação suficientes para limitar os seus efeitos em uma vasta área e o consequente risco de danos civis.
A este respeito, a declaração é uma conquista inovadora. Reconhece o profundo sofrimento infligido por estas armas e é o primeiro instrumento que compromete expressamente os Estados a restringirem o seu uso.
A declaração reconhece que, para além do cumprimento da lei, a proteção eficaz dos civis exige que os Estados e as partes em conflitos armados revejam e melhorem as políticas e práticas nacionais no que diz respeito à proteção dos civis durante conflitos armados que envolvem o uso de armas explosivas em áreas povoadas.
O CICV acolhe com satisfação este compromisso político. Os lembretes diários dos horrores da guerra urbana, vindos do mundo inteiro, realçam a relevância e a urgência da declaração. Contudo, na realidade dos conflitos armados, devemos reconhecer com sobriedade que o potencial de salvar vidas da declaração só se materializará se:
- todos os Estados que endossam implementarem a declaração – na letra e no espírito
- todas as partes no conflito armado, incluindo os grupos armados não estatais, cumprirem plenamente os seus compromissos, e
- todas as partes em conflito interpretarem o DIH, incluindo as suas normas sobre a condução das hostilidades, de boa-fé, como o corpo jurídico protetor que deveria ser.
As palavras são importantes. As promessas políticas são importantes. No entanto, oferecem pouco consolo aos civis que enfrentam no mundo todo os horrores dos bombardeamentos. O que é urgentemente necessário é uma mudança tangível e no terreno. Apelamos a todos para que tomem medidas concretas, aqui em Oslo e quando regressarem às suas capitais, para fazer esta mudança.