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Brasil: Preservar restos mortais para possibilitar identificações futuras

Como tratar um corpo que chega com identidade desconhecida ao cemitério? Como garantir um tratamento adequado e digno dos restos mortais e, ao mesmo tempo, a possibilidade de localizar e identificar esses restos no futuro?

Essas foram algumas das questões que nortearam o primeiro curso prático sobre Gestão de Pessoas com Identidade Desconhecida nos Cemitérios, realizada em São Paulo no final de maio de 2018 e que contou com a participação de cerca de 20 funcionários dos dois principais cemitérios da capital paulista. A iniciativa foi organizada pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e pelo Serviço Funerário Municipal de São Paulo (SFMSP).

Foto: Bruno Radicchi/CICV

Ao longo de três dias, os participantes foram sensibilizados sobre a importância social, cultural e humanitária da adequada preservação dos restos mortais e discutiram estratégias para melhorar os procedimentos de gestão de cadáveres e para preservar a memória das pessoas mortas, inclusive aquelas com identidade desconhecida.

Embora poucos pensem nisso, os cemitérios têm a finalidade social de preservar e honrar a memória daqueles que morreram. "A dignidade é a única coisa que nos resta quando morremos e os cemitérios servem para isso, para preservar a memória e a dignidade dos mortos", explica Roberto Parra, consultor forense do CICV e um dos palestrantes do curso. "Para garantir a dignidade, é essencial que as pessoas responsáveis pelos sepultamentos façam um bom trabalho de preservação dos restos mortais", acrescenta.

Esta atividade faz parte da resposta humanitária que o CICV apoia para tentar reduzir o número de desaparecimentos de pessoas no Brasil. Segundo dados do levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública a pedido do CICV, somente em 2016, as notificações de desaparecimento chegaram a 71.796 casos no país.
As famílias de pessoas desaparecidas têm uma serie de necessidades, entre elas, a de saber o que aconteceu e onde estão os seus seres queridos. Com o curso, os funcionários dos cemitérios estarão mais bem preparados para eventuais casos em que seja necessário exumar e identificar pessoas não identificadas, de modo a que famílias de pessoas desaparecidas possam ter respostas.

Gargalos do sistema

No encontro, os participantes fizeram um diagnóstico dos pontos fortes e fracos no sistema de gestão e armazenamento dos restos mortais na cidade de São Paulo e propuseram ações práticas para dar uma resposta aos gargalos identificados.

FOTO: BRUNO RADICCHI/CICV

Foi uma excelente capacitação, consegui esclarecer algumas dúvidas pontuais que tinha. Quero sempre me aprimorar, melhorar o que fazemos aqui e tomar mais cuidado com a biossegurança" - Cláudio "Pastor" Soares, agente de apoio no Cemitério de Vila Formosa

 

"O hospital não fala com o IML [Instituto Médico Legal], que não fala com a funerária, que não fala com o cemitério... É muito difícil a comunicação e aí tudo se perde. Os órgãos não conversam entre si", afirma Cláudio Magalhães Soares, chamado pelos colegas de "Pastor", e que tem 26 anos de serviço como agente de apoio no Cemitério de Vila Formosa, um dos maiores de São Paulo e "da América Latina". Para ele, é essencial que essa cadeia de informações de diferentes instituições seja integrada e garanta, assim, um tratamento melhor e mais digno aos restos mortais.

Vanúsia Rodrigues Ribas, assistente de gestão de políticas públicas do Serviço Funerário Municipal de São Paulo e responsável pela capacitação dos funcionários dos cemitérios da cidade, foi um dos principais pontos focais do curso. Para ela, a iniciativa precisa ser estendida aos funcionários de outros cemitérios da cidade e incorporar cada vez mais elementos práticos do cotidiano.

VANÚSIA RIBAS, Responsável pela capacitação dos funcionários de cemitérios da cidade de São Paulo.  Foto: Bruno Radicchi/CICV

"O curso prático é importante para discutir os problemas que enfrentamos cotidianamente, mas também para que a nossa equipe retome práticas que vão se perdendo ao longo do tempo e que são essenciais para garantir o máximo de cuidado com as pessoas mortas. E também é uma forma de motivar o nosso pessoal, que se sintam prestigiados de participar de um curso oferecido por uma organização com reconhecimento internacional", explica Vanúsia.

Segundo Andrés Patiño, um dos organizadores do curso e Coordenador Forense Regional do CICV para a Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, após essa primeira iniciativa, a organização começará a trabalhar em uma série de recomendações que serão entregues ao Serviço Funerário Municipal de São Paulo, sobre como melhorar as condições de registro; biossegurança; marcação e delimitação de áreas para sepultamento de pessoas com identidade desconhecida; um sistema de informação único para todos os cemitérios; e a padronização das informações para a possível localização e identificação de corpos no futuro, caso seja requerido ou programado.

No mundo todo, o CICV oferece assessoria, apoio e treinamento para as autoridades locais e os profissionais forenses na busca, recuperação, exame, identificação e tratamento de um grande número de restos mortais em diferentes estados de conservação. O CICV se concentra em fortalecer de maneira sustentável a capacidade local, já que a assistência externa nem sempre estará disponível para atividades e projetos de curto, médio e longo prazos. Também promove o uso das melhores práticas científicas e proporciona o treinamento se necessário.

Participantes

O primeiro curso sobre Gestão de Pessoas com Identidade Desconhecida nos Cemitérios, realizado em São Paulo, contou com participantes motivados e interessados em melhorar o serviço, e ter um sistema integrado de informações.
Foto: Bruno Radicchi/CICV