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Campo de Al Hol (Síria): “A maioria das crianças aqui nunca viu uma flor ou uma casa”, diz psicoterapeuta do CICV

Al Hol é o maior campo de refugiados e deslocados da Síria. São quase 60 mil pessoas de dezenas de países, a maioria mulheres e crianças que vivem em cabanas no meio do nada... por anos a fio. Cercadas por uma grade intransponível, com uma sensação de insegurança contínua e sem perspectiva de futuro. É nesse contexto que trabalha a psicoterapeuta Alessandra Lenner, delegada de Saúde Mental do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Italiana, Alessandra assistiu pessoas refugiadas na Argélia e chegou a Al Hol com a mesma missão: prestar um serviço de apoio psicossocial e saúde mental onde for necessário. Um trabalho de muita responsabilidade e total dedicação, que traz consigo desafios e uma enorme aprendizagem no terreno.

Quando você começou a trabalhar no campo Al Hol como psicoterapeuta do CICV? Qual foi a sua motivação?

A missão no nordeste da Síria é, na verdade, a minha primeira experiência de trabalho com o CICV, que acabou durando mais do que eu esperava. Ela termina em março, depois de 21 meses. Vi muitas coisas e trabalhei duro, contando com a ajuda da Byan [oficial de Saúde Mental e Apoio Psicológico] para implementar o serviço do zero dentro do hospital de campanha. As necessidades aqui são incalculáveis; são adultos e crianças que passaram por inúmeros eventos traumáticos, e todos vivem sob condições extremamente difíceis. Além disso, esses dias começou a nevar... É muito pesado. A minha motivação? Desde pequena eu queria ser psicóloga, então foi fácil para mim quando chegou o momento de escolher um curso universitário.

E a motivação para trabalhar nesses contextos vem do desejo de dar visibilidade ao sofrimento psíquico que os nossos beneficiários enfrentam e de garantir uma resposta às necessidades deles. Atender às necessidades físicas e emocionais é importante para favorecer a recuperação e, acima de tudo, para melhorar a capacidade do indivíduo de reconstruir e reassumir o controle da própria vida.

Alguns anos atrás, a vida me levou até a Argélia. Eu, meu marido e nossas três filhas nos mudamos para Argel. Lá comecei a trabalhar com pessoas refugiadas, principalmente de países subsaarianos. Eu estava implementando uma resposta de apoio psicossocial e de saúde mental para o ACNUR [Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados] e percebi a importância de responder rapidamente às questões de saúde mental sempre que necessário, especialmente em contextos onde esse tipo de serviço nem sempre está acessível. Esse foi o motivo que me trouxe até o CICV e, depois, até a Síria: prestar um serviço de apoio psicossocial e de saúde mental quando e onde for necessário e de uma forma adequada ao contexto.

Alessandra Lenner (esq.) e Byan Safi antes de sair do Hospital de Campanha para chegar ao Anexo do campo de Al Hol para a atividade semanal.

O que você sentiu inicialmente quando chegou a Al Hol?

A primeira vez que eu visitei o hospital de campanha do campo Al Hol foi em julho de 2020. Fazia muito calor, os primeiros casos de Covid-19 no campo estavam sendo registrados, e a equipe de saúde trabalhava para enfrentar mais essa emergência. Havia algumas pacientes esperando, sentadas em bancos, vestindo suas "abayas" pretas e compridas, cada uma delas com pelo menos duas ou três crianças. Essas mulheres, totalmente cobertas da cabeça aos pés sob um sol de rachar, esperando por horas para serem atendidas, cuidando de várias crianças, me fizeram pensar: como elas conseguem? Como isso é possível? Como elas dão conta? Mas o sentimento mais difícil foi quando cheguei pela primeira vez ao Anexo (que é onde as famílias provenientes de outros países moram há quase três anos). No Anexo, você vê muitas crianças por todas as partes. A maioria é muito jovem, inclusive de três ou quatro anos de idade, e brinca sozinha coberta de poeira, olhando para você com um olhar suspeito. Fica claro imediatamente que elas estão acostumadas a estar sempre alertas e que não vai ser fácil interagir com elas. Principalmente no começo, é difícil lidar com esse sentimento de rejeição, encontrar um motivo racional que ajude a entender tudo isso. É muito doloroso ver crianças com tanto medo e insegurança.

A visão mais difícil é a das cercas intermináveis... Elas são longas e intransponíveis, ainda que não sejam tão altas. A sensação é de que não existe futuro, não existem possibilidades para além daquelas cercas

Quais são os sons, os cheiros e as visões que estão presentes no campo?

A visão mais difícil é a das cercas intermináveis... Elas são longas e intransponíveis, ainda que não sejam tão altas. Mas a sensação que dá é de que não existe futuro, não existem possibilidades para além daquelas cercas. Assim que você chega lá, suas narinas são invadidas pelo cheiro de poeira e fumaça, de latrinas e combustível. Depois, você ouve o motor de caminhões enormes que vão distribuindo artigos básicos. As crianças tentam pular em cima desses caminhões, já que é uma oportunidade de brincar. Infelizmente, isso levou a alguns acidentes durante esses meses. Depois, vêm os cachorros: eles latem, comem os restos de comida e patrulham a área em matilhas. Para algumas crianças, os cachorros são amigos "que nos protegem". Pessoalmente, eu amo cachorros, mas esses me davam medo. E as barracas, milhares delas...

Como e quando o campo Al Hol foi criado?

O campo Al Hol foi estabelecido originalmente para pessoas refugiadas iraquianas no início de 1991, durante a Guerra do Golfo, e reaberto pelo ACNUR no começo de 2003 para abrigar pessoas refugiadas iraquianas que fugiam da Guerra do Iraque. Em 2012, a região passou a ser controlada pelo Estado Islâmico e se tornou uma zona residencial para membros do Estado Islâmico e suas famílias. De 2016 a 2018, a população síria do campo de Al Hol aumentou com a chegada de mais pessoas deslocadas internamente, provenientes de outras regiões da Síria.
Entre dezembro de 2018 e março de 2019, Al Hol recebeu um fluxo grande e contínuo de pessoas deslocadas oriundas da região de Baghuz, o último reduto que havia sobrado do Estado Islâmico na Síria. Durante esse período, mais de 63 mil pessoas chegaram ao campo, o que gerou uma pressão significativa para a infraestrutura da época.

Com a queda do califado do Estado Islâmico, a população de Al Hol disparou, superando 73 mil pessoas. Cerca de 11 mil eram cidadãos de terceiros países, que é como são consideradas as mulheres e os filhos de estrangeiros que se juntaram ao Estado Islâmico. De acordo com a última atualização (23/01/2022), há 56.140 beneficiários.

Das quase 60 mil pessoas que vivem no campo, dois terços são crianças e mulheres – muitas deles sem documentos de identificação ou cidadania. De onde elas vêm? 

Atualmente, o campo está organizado em 8 Fases (além de uma extensão da Fase 4) e um Anexo com 5 Fases: as pessoas deslocadas sírias e as pessoas refugiadas iraquianas estão em diferentes Fases do campo principal, enquanto os cidadãos de outros países residem no Anexo, que está segregado do resto da população do campo. As pessoas refugiadas iraquianas vivem nas Fases 1, 2, 3 e 7, ao passo que as pessoas deslocadas sírias moram nas Fases 4, 5 e 6.

Neste campo, o maior fator de estresse é a falta de esperança no futuro. Uma insegurança contínua sobre o que o futuro reserva. E esse é o caso de muitas crianças, que podem manifestar isso na forma de sintomas como enurese noturna, distúrbios do sono ou dificuldade para regular suas emoções.

O campo Al Hol é diferente dos outros campos em que o CICV está presente?

Como esta é a minha primeira missão com o CICV, só consigo fazer comparações com os campos que visitei quando trabalhava com outras organizações. A principal diferença é que, neste campo, especialmente no Anexo, o maior fator de estresse é a falta de esperança no futuro. Uma insegurança contínua sobre o que o futuro reserva. E esse é o caso de muitas crianças, que podem manifestar isso na forma de sintomas como enurese noturna, distúrbios do sono ou dificuldade para regular suas emoções.

Como é o campo de Al Hol? Poderia nos descrever?

O Al Hol é um campo imenso que cresceu mais rapidamente e em maior escala do que provavelmente era esperado. É descomunal em comparação com o pequeno vilarejo de Al Hol. É uma área gigantesca repleta de barracas brancas, que podem ser vistas a quilômetros de distância. Ele é enorme e está num terreno desértico, com temperaturas altíssimas durante o verão e um inverno austero. Como falei antes, tem nevado estes dias.

Equipe do CICV trabalha com jovens pacientes na barraca de Apoio Psicossocial.

Um campo deveria ser uma "solução temporária". Depois de anos morando em um campo, é difícil manter a esperança. Uma mulher me disse: "Parece que não há mais espaço para mim e para os meus filhos neste mundo"

Como é o dia a dia no campo de Al Hol? O que as pessoas fazem? O que elas comem? Onde dormem?

O dia a dia em um campo desse tipo é cheio de desafios: atividades cotidianas como ir ao banheiro, ter acesso a água ou comprar comida no mercado podem ter seus vários obstáculos. As pessoas moram em barracas que ficam quentes durante o verão e muito frias no inverno, apesar dos esforços de diferentes organizações e do CICV para disponibilizar barracas de boa qualidade. Um campo não conta com uma estrutura comparável à de um vilarejo. Um campo deveria ser uma "solução temporária". Depois de anos morando em um campo, é difícil manter a esperança no futuro. Uma mulher me disse: "Parece que não há mais espaço para mim e para os meus filhos neste mundo". A vida fica em suspenso para alguns dos beneficiários que vivem num campo, e as crianças estão crescendo num lugar que vira as costas para suas necessidades básicas.

Quais são as principais necessidades das crianças que moram no campo Al Hol? Quais estigmas elas enfrentam?

Essas crianças precisam de tudo... mas o que elas mais precisam é ser reconhecidas como crianças, ser respeitadas e enxergadas como crianças que moram num contexto insuportável. Elas enfrentam o estigma de fazer parte de algo que elas nunca escolheram. Elas não conhecem o mundo. A maioria delas nunca viu uma flor ou uma casa, nunca frequentou a escola e vive com medo constante. Como disse um dos meus psiquiatras favoritos em um livro: "Não se nasce uma criança resiliente; torna-se uma criança resiliente". Todos nós somos responsáveis por cuidar das crianças e garantir que todas elas tenham a oportunidade de aprender a ser resilientes para conseguir superar os desafios que a vida reserva. E essas crianças estão vivendo num lugar que ignora as necessidades delas.

Essas crianças precisam de tudo. Elas não conhecem o mundo. A maioria delas nunca viu uma flor ou uma casa, nunca frequentou a escola e vive com medo constante

Alessandra e Byan na barraca de Apoio Psicossocial.

Quais são as consequências dessas privações para uma criança?

Para responder, preciso fazer uma distinção entre as crianças que vivem nas Fases (refugiadas do Iraque ou deslocadas internamente) e as que vivem no Anexo (cidadãs de outros países).

Quando eu visito o Anexo, o sinal mais doloroso que vejo do sofrimento daquelas crianças é a dificuldade de algumas de entender e regular suas emoções. Principalmente no caso dos meninos. Eles estão crescendo sem uma figura masculina (todos os homens agora estão em lugares de detenção) e, quando chegam aos 12 anos, são realocados a centros de reabilitação. Isso é algo que traz implicações sérias para o bem-estar psicológico de uma criança. Crescer com essa perspectiva cria mais um fardo para crianças que já sobreviveram a diferentes experiências traumáticas. Principalmente no caso dos meninos, que vivem em estado de medo constante, e isso tem um impacto tremendo na vida deles.

As crianças nas Fases também têm muitas necessidades: nós vimos não apenas sinais de transtorno do estresse pós-traumático, como também mães que se sentem incapazes de suprir as necessidades básicas de seus filhos, de encarar seu sofrimento e criar um ambiente socioemocional adequado. Às vezes, as crianças não conseguem nem segurar uma caneta ou falar sobre seus gostos.

Mas algo comum a todas as crianças é uma sensação interminável de desesperança.

Como você trabalha com essas crianças e mulheres? Tem alguma história inspiradora envolvendo alguém que você conheceu lá que você gostaria de compartilhar?

Na barraca de Apoio Psicossocial, trabalhamos principalmente com atividades do livro "The Book About Me". É um livro que reúne atividades criadas para tratar das necessidades de crianças que desenvolveram ou correm risco de desenvolver questões de saúde mental em decorrência de situações de guerra, tortura ou migração forçada. Nosso trabalho gira em torno principalmente de ajudar as crianças a refletir sobre suas lembranças, suas emoções e suas preferências individuais. Pedimos que elas falem sobre "o que eu gosto de fazer", "o que me deixa feliz" e "o que deixa o meu irmão/irmã/primo/prima feliz", mas também que pensem sobre as pessoas que são importantes para elas. Tudo isso é transformado em desenhos, pinturas ou até mesmo uma construção com blocos de madeira. Por exemplo, elas podem desenhar uma flor com os nomes das pessoas com quem elas podem contar; um exercício que costuma ser muito bem aceito, inclusive por mulheres jovens. Nós adaptamos as atividades ao contexto e evitamos certas coisas, como desenhar corpos humanos. Algumas crianças vêm à barraca de Apoio Psicossocial com mais frequência, o que é bom porque conseguimos acompanhá-las durante mais tempo e ver como elas dão conta de lidar melhor com o contexto.

No Anexo, as coisas são mais complicadas e não temos um espaço específico para nós, então criamos um usando tapetes: eles delimitam um espaço físico de trabalho. No momento, temos três tapetes: um para meninos, um para meninas e outro para crianças menores. Temos uma rotina só nossa, e é lindo demais ver como ela vai sendo aprendida pelos nossos visitantes mais frequentes. Quando chegamos, por volta das 11h, começamos a montar o nosso espaço de trabalho. Penduramos algumas lonas para criar sombra, já que no verão a temperatura pode chegar a quase 50°C! Depois, desenrolamos os tapetes perto da unidade móvel de saúde e colocamos tábuas de madeira onde as crianças podem desenhar.

Começamos com uma mandala, já que as mandalas têm diferentes vantagens para nós. Primeiro, porque elas são bem aceitas, e, segundo, porque dá para encontrar mandalas de todas as formas para imprimir. As crianças adoram colorir as mandalas, e isso estimula sua concentração e melhora sua autoestima. Às vezes, elas ficam muito tempo colorindo e capricham no resultado, mas o mais importante é que isso ajuda as crianças a relaxar e dividir o espaço de trabalho com outras pessoas, fazendo algo em conjunto. De forma geral, as meninas têm mais facilidade com isso; elas estão mais abertas a dividir os lápis de cor e respeitar os outros. Já com os meninos, isso é um pouco mais difícil. Às vezes, um ou dois deles querem pegar todos os lápis de cor, ou então eles dizem palavras "ofensivas".

Agora, estamos tentando facilitar a interação com os meninos através da presença de um colega homem. É um jeito de tentar evitar a frustração deles de falar com mulheres. Além disso, temos que lembrar que eles não têm uma figura masculina na sua vida, então isso também serve para gerar a oportunidade de eles criarem uma relação positiva — e talvez até de confiança — com uma figura masculina. Depois disso, fazemos uma atividade sobre animais ou a natureza em geral. As crianças adoram ficar sabendo das curiosidades que nós contamos para elas. Por exemplo, falamos de rinocerontes, da águia-das-estepes ou até de leões. Geralmente, também levamos mapas para mostrar onde cada animal vive. Elas têm muita curiosidade de olhar para os mapas e descobrir se certo animal está presente no seu país de origem.

Depois, passamos a uma atividade mais psicossocial, sobre suas emoções ou preferências. No dia em que falamos do rinoceronte, por exemplo, discutimos "o que torna você especial": do mesmo jeito que o rinoceronte tem um chifre enorme, o que te torna ou te faz sentir especial? Nesse dia, um menino desenhou uma mesa de jantar linda, com tâmaras e cuscuz. Ele desenhou algo que refletia sua cultura e quis mostrar para nós o orgulho que ele sentia da culinária do seu país. Outro dia falamos sobre a lua, e a atividade era: "O que você gosta de fazer antes de dormir?". Era uma atividade sobre a rotina noturna, algo que — num contexto como esse — é muito frágil, mas ainda muito importante para qualquer criança.

Nesse dia, uma menina que vem sempre desenhou o interior de uma barraca, onde ela e o irmão estavam desenhando antes de dormir. Todos nós temos muito carinho por essa menina, especialmente porque a Byan acompanhou a mãe dela durante algumas sessões. A mãe apresentava sinais sérios de sofrimento e disse para ela que não dava mais conta de cuidar dos seus filhos. Ela era muito passiva. Como falei antes, prestar apoio às mães é fundamental. Nesse caso, ajudar a mãe a lidar melhor com o contexto (ela começou a cozinhar e vender os pratos que preparava) teve um impacto direto no bem-estar da filha. E a mãe confia em nós e deixa a filha conosco.

Todas as atividades que realizamos são adaptadas ao contexto. Conversando com as mães, descobrimos que certas imagens não estão permitidas. Mas como deixar as crianças descobrirem certas coisas sem imagens? Foi então que descobrimos que a questão tinha a ver com os olhos. Agora, nós cobrimos os olhos delas, e a atividade é bem aceita.

Vimos não apenas sinais de transtorno do estresse pós-traumático, como também mães que se sentem incapazes de suprir as necessidades básicas de seus filhos. Às vezes, as crianças não conseguem nem segurar uma caneta ou falar sobre seus gostos.

Desenho feito por uma criança assistida por Alessandra.

Com o que essas crianças sonham?

As crianças expressam muitas coisas através das atividades que preparamos para elas, e elas têm muitos sonhos de vários tipos: desde uma casa com um jardim até uma mesa posta com cuscuz e sucos. E muitas ainda sonham em voltar para casa. Quando levamos mapas, algumas apontam para seu país e nos mostram onde ele fica. Para nós, o aspecto mais importante e surpreendente é que essas crianças — que vivem num contexto extremamente desafiador onde suas necessidades são negligenciadas e que sobreviveram à guerra e à migração forçada — ainda conseguem sonhar, expressar e compartilhar. Não foi fácil superar a desconfiança, e em muitos casos ela ainda não foi superada, mas quando vemos o que elas conseguem fazer e comunicar usando alguns lápis e papel, nós nos esquecemos da frustração e do cansaço das tentativas malsucedidas, dos dias difíceis.

Alessandra na barraca de Apoio Psicossocial.