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Comentários atualizados trazem um olhar renovado sobre a contínua relevância das Convenções de Genebra

O que é aceitável e o que está proibido em um conflito armado? As quatro Convenções de Genebra de 1949 conformam a base do Direito Internacional Humanitário (DIH) e oferecem um marco que apresentam as respostas para essa pergunta.

Na década de 50, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) publicou um conjunto de Comentários sobre as Convenções, proporcionando assim um guia prático para que fossem implementadas. No entanto, para refletir os novos avanços nas normas e na prática desde então, a organização encomendou um novo conjunto de comentários que visam refletir as atuais interpretações das Convenções. O primeiro volume - a atualização dos Comentários sobre a Primeira Convenção - já está sendo publicado. Jean-Marie Henckaerts, que está a cargo do projeto, conta com mais detalhes:

Qual é o principal objetivo da atualização dos Comentários?

O principal objetivo da atualização dos Comentários é oferecer uma compreensão das normas segundo a interpretação atual, de modo que seja aplicado efetivamente nos conflitos armados de hoje em dia. Consideramos que seja uma importante contribuição para reafirmar a contínua relevância das Convenções, gerando assim o respeito por elas e fortalecendo a proteção para as vítimas afetadas por conflitos armados. A experiência obtida a partir da aplicação e da interpretação das Convenções nas últimas seis décadas gerou um entendimento detalhado de como elas funcionam em conflitos armados no mundo todo e em contextos muito diferentes daqueles que levaram à adoção delas. Com isso, os novos Comentários vão além das primeiras edições da década de 50, que se baseiam amplamente no trabalho preparatório prévio às Convenções e na experiência da Segunda Guerra Mundial.

O senhor pode dar um exemplo de questões que os Comentários esclarecem?

Os Comentários esclarecem muitas questões, desde como as diversas normas do DIH se aplicam aos complexos conflitos de hoje em dia até a obrigação que as Partes têm com relação aos feridos e doentes. Por exemplo, a Primeira Convenção de Genebra exige que os feridos e doentes sejam protegidos e respeitados. Mas o que isso significa na prática? Que parâmetro de atendimento médico é exigido para o tratamento de feridos e doentes? Como os feridos e doentes devem ser recolhidos e cuidados quando não houver tropas no campo de batalha? As respostas a essas e outras perguntas têm tanto dimensões legais quanto operacionais abordadas pelos Comentários sobre a Primeira Convenção.

Quem o senhor imagina que usará os Comentários?

Os Comentários são uma ferramenta essencial para que, por exemplo, comandantes militares, oficiais e advogados possam garantir a proteção às vítimas durante conflitos armados. Eles serão usados para treinar membros das Forças Armadas, preparar instruções para militares e garantir que as ordens militares estejam em conformidade com as normas. Mas serão úteis também para juízes que devem aplicar o direito humanitário, incluindo cortes e tribunais penais nos quais as pessoas acusadas de violar as normas podem ser processadas. Entre as outras pessoas que poderão usá-los se incluem advogados de organizações governamentais, organismos internacionais, CICV e Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, assim como acadêmicos. Sabemos que os Comentários da década de 50 foram úteis para eles. Portanto, estamos confiantes de que a atualização dos Comentários será uma ferramenta igualmente importante já que oferece um olhar e referência com mais nuances...

Como os Comentários refletem a prevalência dos conflitos armados não internacionais hoje em dia?

Como a maioria dos conflitos de hoje é de natureza não internacional, a regulamentação desses conflitos tornou-se uma questão crucial. O artigo 3º é uma disposição central das Convenções no que se refere a esses conflitos e os novos Comentários oferecem uma interpretação abrangente de todos os aspectos desta "mini-Convenção". Entre os aspectos, se encontram o escopo de aplicação, as exigências de tratamento humano, o cuidado de feridos e doentes, as atividades humanitárias e os aspectos penais e o cumprimento. Mas também lida com tópicos prementes como a violência sexual e non-refoulement, que é a proibição de enviar as pessoas de volta para os países onde as suas vidas poderiam estar em perigo.

Que avanços os Comentários levam em consideração?

Um bom exemplo é a forma como a proteção das mulheres é tratada. A referência nos Comentários originais sobre as mulheres como 'mais frágeis e cuja honra e modéstia requerem respeito' não seria considerado adequado hoje em dia. Obviamente, os Comentários originais eram um produto de um contexto histórico e social de uma época. Atualmente, existe uma compreensão mais profunda de que mulheres, homens, meninas e meninos têm necessidades e capacidades específicas relacionadas com as diferentes maneiras que o conflito armado pode afetá-los. Os novos Comentários refletem os progressos sociais e legais internacionais em relação à igualdade dos gêneros.

Os novos Comentários levam em consideração outras áreas do Direito Internacional?

Quando as Convenções de Genebra foram adotadas, muitas áreas do Direito Internacional ainda estavam surgindo, como o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Penal Internacional e o Direito dos Refugiados. No entanto, eles cresceram significativamente nesse ínterim. Essas áreas do Direito são complementares ao direito humanitário já que visam proporcionar proteção a pessoas necessitadas. O Direito Internacional Humanitário não é um conjunto de leis independente; há muita comunicação com outras áreas do Direito Internacional. Portanto, as interpretações atuais oferecidas nos novos Comentários levam em consideração todos esses progressos em outras áreas sempre que sejam relevantes para a interpretação de uma norma da Convenção. Existem avanços em outras áreas mais técnicas, como o Direito dos Tratados ou as normas sobre a responsabilidade dos Estados que também se refletem nos novos Comentários.