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‘É uma forma de se expressar’: música para adolescentes brasileiros e migrantes em abrigo no Brasil

O relógio marcava 15h quando os meninos começaram a entrar na sala. Um, dois, três, quatro. Cada um apanhou um violão, instrumento favorito por ali, e tomou seu lugar. No começo, um pouco tímidos, eles foram se animando. Meia hora depois, um deles já havia questionado o professor. "Mi ou ré?", perguntou Marcos*, 15 anos, com um sorriso de quem desconfiava ter achado um erro nos acordes ensinados pelo mestre.

Há dois anos ele mora no abrigo juvenil masculino que acolhe adolescentes em situação de vulnerabilidade em Boa Vista, capital de Roraima. Entre eles há um crescente número de meninos venezuelanos que chegam desacompanhados ao Brasil. "A música é uma forma de se expressar. Expressar o que a gente sente", disse Marcos que vive sua primeira experiência com a música. "Eu nunca tinha tocado nenhum instrumento".

"Eu gosto de tocar teclado", disse José Garcia*, 17 anos, outro jovem que vive no abrigo e frequenta as aulas de música. Ele gosta de rap e tem vontade de ser cantor. "Eu acho que o rap é a poesia do que acontece, do que vai e do que pode acontecer".

Em julho, o CICV doou os instrumentos musicais para o abrigo. Foram entregues violões, guitarras, pandeiros, teclados e cavaquinhos, além de jogos pedagógicos para montar as salas de música e de jogos. Naquele período, a pandemia da Covid-19 os levara ao isolamento total. As atividades externas – inclusive as idas à escola – estavam suspensas.

Foi quando o projeto para aulas de música, proposto pela direção, foi acolhido pelo CICV que desde 2019 realiza visitas regulares ao abrigo com o objetivo de oferecer aos menores desacompanhados migrantes os serviços de "Restabelecimento de Laços Familiares (RLF)", bem como para fazer seguimento do seu bem-estar.

"É uma população muito vulnerável e que precisa desse apoio para crescer, ter uma vida positiva", disse Nadège Porta, delegada de proteção do CICV em Boa Vista. "E qualquer ajuda é feita sem discriminação".

Após a entrega dos instrumentos musicais pelo CICV, a mudança ocorreu primeiro no espaço físico do abrigo: uma sala outrora usada como depósito foi transformada em sala de música. "As teias de aranha deram espaço para os instrumentos musicais. A sala ganhou vida", disse Frank Ferreira, professor de violão, guitarra e cavaquinho.

Desde então, meninos brasileiros e migrantes têm aulas de música cinco vezes na semana. Aprendem teoria às terças e quintas e prática às segundas, quartas e sextas. "A música alivia as tensões e os ajuda a se expressar", disse Aminadabi dos Santos, gerente do abrigo. Ele ressalta melhorias na convivência entre os meninos desde o início das aulas, como redução de conflitos internos e evasões. "Ver que conseguimos impactar a vida deles é muito gratificante".

Isaque* tinha 11 anos quando se viu forçado a fugir de casa na Venezuela. Afetado pela violência armada e maus-tratos, ele nem se dava conta que tinha ido para tão longe quando cruzou sozinho a fronteira do Brasil em 2017. "Eu pensei, me vou por um tempo e depois volto", lembrou.

Ao chegar a Pacaraima, foi atendido pelo Conselho Tutelar e levado ao abrigo na capital. Depois da doação dos instrumentos, ele fez algumas aulas de música, mas não se adaptou. Sua maior descoberta aconteceu na sala de jogos apoiada pelo CICV. Apaixonou-se pelo xadrez. "É um jogo inteligente", disse. "Tem que pensar na jogada, mover cada peça no momento certo".

Sua mãe foi localizada recentemente na Venezuela e através do serviço de RLF eles têm mantido contato regular. Em breve, ele vai partir para reencontrá-la. Do Brasil, disse que vai levar a descoberta pelo xadrez e outras, muito peculiares. "Gostei da música e da comida", disse e depois elegeu seus pratos favoritos. "Salgadinhos com queijo e também tapioca, que acho muito saborosa".

*Nomes fictícios foram usados para preservar a identidade dos entrevistados.