Artigo

"As histórias dos pacientes me emocionam", conta cirurgiã de guerra no Sudão do Sul

Cirurgiã de guerra baseada no Sudão do Sul, Carina Gianserra trabalha há três anos no CICV atendendo pacientes feridos por conflitos. Ser cirurgiã de guerra num dos contextos mais importantes da organização representa não apenas muita responsabilidade, mas também traz consigo muitos desafios, uma aprendizagem no terreno e uma total dedicação. Argentina, Carina conta que um quarto dos pacientes que recebe são mulheres e crianças feridas em situações causadas pelo conflito armado não internacional e pela violência armada.

Por que você decidiu trabalhar em um organismo humanitário na área de cirurgia de guerra?

Eu queria dedicar todo o meu conhecimento e capacidade às pessoas mais necessitadas. Como cirurgiã-geral vinda da Argentina, tive que aprender muito sobre como tratar os pacientes feridos de guerra e as suas necessidades e feridas específicas. As questões de saúde que enfrentamos na área de cirurgia de guerra nos desafiam e este é um trabalho que exige total dedicação.

Foto: CICV

A sua primeira missão foi no Sudão do Sul? Se não foi, conte um pouco como foram as suas missões anteriores.

A minha primeira missão com o CICV foi em Maiduguri, Nigéria. Um projeto movimentado com muitas emergências e vítimas em massa no qual atendíamos todas as necessidades cirúrgicas das pessoas deslocadas nas comunidades ao redor da cidade. Depois fui para Goma, na República Democrática do Conto (RDC). Lá também tratávamos principalmente feridas causadas por armas de fogo e armas brancas. Agora estou em Juba, Sudão do Sul, trabalhando principalmente com feridas causadas por armas de fogo em pessoas que vem de todas as partes do país para serem atendidas e tratadas aqui. Um quarto dos pacientes que recebemos com esse tipo de ferimento são mulheres e crianças que foram feridas em situações causadas pelo conflito armado não internacional e pela violência armada em todo o país.

Foto: CICV

Quais são os principais desafios do trabalho na área de cirurgia de guerra em países afetados por conflitos?

O principal desafio é tentar alcançar os melhores resultados funcionais para os pacientes feridos. Depois de sofrerem feridas devastadoras, essas pessoas devem voltar para as vidas que tinham antes. Em muitos casos, essas feridas têm consequências que mudam para sempre as vidas dos pacientes, como por exemplo, continuar vivendo com uma deficiência física. Portanto, está nas nossas mãos dar a melhor oportunidade possível para reduzir o impacto que as feridas têm. No Sudão do Sul, depois de décadas de conflito, o acesso à assistência à saúde continua muito limitado. Muitos pacientes trazidos aos dois estabelecimentos de apoio cirúrgico do CICV no Hospital Militar de Juba e no Hospital do Condado de Akobo com feridas causadas por armas de fogo chegam três ou quatro dias depois de terem sido feridos, aumentando o risco de infecções e complicações. Tais complicações nunca aconteceriam se as comunidades tivessem um melhor acesso à assistência à saúde. Em 2020, entre janeiro e dezembro, atendemos 438 pacientes com feridas causadas por armas de fogo nas unidades cirúrgicas que recebem apoio do CICV. Somente entre janeiro e março de 2021, já atendemos 124 pacientes com esse tipo de ferimento.

Foto: CICV

Quais são as principais necessidades dos pacientes que vocês atendem?

Depois de décadas de guerra, as comunidades em todo o Sudão do Sul enfrentam muitas dificuldades simultâneas. As consequências humanitárias dos ciclos de conflito e da violência armada limitam e impedem que as famílias e comunidades no país mais jovem do mundo possam moldar e se apropriar do seu futuro. Devido ao conflito e à violência armada, as pessoas são deslocadas muitas vezes, o que as impede de cultivar a sua própria terra. As suas propriedades são saqueadas e as casas são incendiadas. Muitas pessoas são mortas ou feridas. Elas vivem em áreas remotas onde não têm nenhum acesso à água potável, nem aos serviços básicos como assistência à saúde ou educação. Estima-se que cerca de 65% das mulheres e meninas no país são sobreviventes de violência de gênero.

No caso das famílias que têm condições de reconstruir as suas vidas e os seus meios de subsistência, elas precisam de uma paz duradoura, com segurança e estabilidade necessárias para educar os seus filhos e viver sem ter que ver constantemente os familiares ou entes queridos serem mortos em decorrência do conflito e da violência armada ou por carecerem de acesso à assistência à saúde.

Foto: CICV

Quando você está a caminho do trabalho, no que você pensa? O que a motiva e o que a assusta?

Quando estou a caminho do trabalho, gostaria de encontrar os pacientes melhorando e se recuperando quando chegam ao hospital. O que me assusta é encontrar uma complicação ou um mau resultado inesperado. Mas o que mais me assusta é quando todas as minhas capacidades e vontade não são suficientes para ajudar os pacientes como gosto de fazer.

Foto: CICV

Você poderia compartilhar um momento ou uma história inspiradora de trabalho com os pacientes?

Várias histórias me vêm à cabeça neste momento e chego a me emocionar. Embora isso não esteja permitido como cirurgiã.

Jacques é um jovem de 18 anos que chegou ao hospital durante a minha passagem por Goma, RDC, com uma apunhalada no peito. Ele chegou às 02:00 da madrugada e o levamos rapidamente ao hospital. Tivemos que abrir o seu peito imediatamente. Nathalie (a anestesista) e eu nos olhamos com confiança, mas com muito medo. Esta situação foi desafiante e tínhamos medo do que poderia acontecer. O paciente tinha um ferimento cardíaco no ventrículo direito. Tive que suturar um coração em movimento pela primeira vez na minha carreira médica. A cirurgia foi desafiante, mas terminou bem. No dia seguinte, descobrimos que a faca também tinha perfurado a parede entre os ventrículos, o que causava um edema pulmonar no paciente. Um tipo de ferimento que não pode ser resolvido no terreno. Com muito tempo e esforço, Jacques melhorou e voltou para casa com uma cardiopatia que requer medicação. Você pode ver Jacques na foto nesta entrevista. É um rapaz muito meigo, tímido e respeitoso, com o sorriso mais lindo que já vi.

O CICV trabalha no Sudão do Sul há 40 anos. O Sudão do Sul é uma das maiores operações globais do CICV e tem o objetivo de melhorar o acesso à assistência à saúde e à água; responder às necessidades imediatas e de longo prazo das comunidades mediante a distribuição de alimentos e utensílios básicos e promover iniciativas microeconômicas; aprimorar a dignidade e a proteção das vítimas de conflitos e violência armada; interagir com portadores de armas para melhorar a compreensão e o respeito pelo direito; e desenvolver a capacidade da Cruz Vermelha do Sudão do Sul para atender as necessidades humanitárias. O CICV opera com mais de mil funcionários em todo o país e com um orçamento anual de 120 milhões de francos suíços em 2021. Realiza respostas emergenciais para as comunidades afetadas pelo conflito e violência armada, e ajuda as famílias a retornarem às suas casas para fortalecer a sua resiliência, reconstruir as suas vidas e meios de subsistência. 

416.358
408.938
438
155
5,9 mil