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Moçambique: o mundo não pode ignorar a crescente violência e a crise humanitária

O norte de Moçambique está imerso em um conflito cada vez pior. Hannah Matthews chefiou o trabalho do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) na província de Cabo Delgado, no norte do país. A profissional de saúde britânica relembra os seus últimos dois anos no país.

Quando conversamos com uma pessoa traumatizada, sentimos a dor dela. Quando reconstruímos uma maternidade depois de um ciclone para ser arrasada pelo conflito, sentimos raiva por dentro.

Quando o sofrimento das pessoas que tentamos ajudar continua piorando, sentimos impotência.

Moçambique deixou uma marca em mim como nenhum outro lugar onde trabalhei nos últimos 12 anos no âmbito humanitário.

Durante muito tempo, o conflito e a crise humanitária na província de Cabo Delgado não receberam a atenção que merecem.

A violência brutal foi lentamente aumentando nos últimos três anos e agora chegou a um novo nível de intensidade. Houve mais ataques na primeira metade de 2020 do que em todo o ano de 2019. O recente ataque em Mocímboa da Praia foi o último, mas não será o final.

Um golpe duplo

Aceitei o cargo no CICV na cidade costeira de Pemba, ao norte, em julho de 2018. Nessa época, os ataques eram esporádicos e a nossa própria resposta humanitária estava apenas no começo. A situação mudou de forma inesperada.

O ciclone Idai, uma das piores tempestades tropicais já registradas no hemisfério sul, atingiu a região central de Moçambique no início de março de 2019. Cerca de dois meses depois, o ciclone Kenneth trouxe devastação para o norte do país.

A destruição foi total. Fortes árvores de baobás foram arrancadas do solo e as raízes ficaram expostas. Casas e edifícios foram reduzidos a escombros.

Para as pessoas que já haviam fugido devido ao conflito, Kenneth foi um golpe duplo. Eles não somente estavam necessitados como consequência da tempestade, mas também muitos perderam as

suas casas nas zonas rurais e qualquer perspectiva de reconstruir as suas vidas.
Junto com o Movimento Internacional da Cruz Vermelha, acionamos uma resposta, levando abrigo, artigos de higiene e utensílios domésticos. Os ataques armados não pararam, dificultando ainda mais o acesso às áreas rurais.

Devido à insegurança, nos enfocamos nos esforços humanitários nas áreas urbanas. Na cidade de Macomia, junto com outras agências humanitárias, reconstruímos o hospital-maternidade - o único em todo o distrito.

O hospital, em Macomia, em processo de reconstrução após o ciclone Kenneth.

Em maio passado, Macomia foi atacada. As linhas de comunicação foram interrompidas. Havia rumores de que o hospital havia sido destruído.

As fotos começaram a aparecer no dia seguinte. O meu coração se partiu quando vi os restos carbonizados do edifício.

A maternidade era uma ala na qual tínhamos trabalhado com muito orgulho. 

Era algo muito importante em uma província onde 91 % dos estabelecimentos de saúde não funcionavam devido ao conflito.

Os restos carbonizados do hospital depois de ter sido destruído pela violência.

Macomia era uma cidade pequena. Funcionava como um lugar de refúgio para as pessoas desarraigadas pelo conflito. Quando a cidade foi ataca, os habitantes fugiram para a mata.

Um voluntário da Cruz Vermelha de Moçambique me contou que escapou com a esposa e os quatro filhos pequenos, mas teve que deixar a mãe idosa para trás. Eles se esconderam por três dias durante os quais ouviam o tiroteio e as explosões. A mãe dele conseguiu sobreviver de alguma maneira.

Nos dias subsequentes, frágeis barcos repletos de gente, jovens e idosos, começaram a chegar a Pemba. Outros mais chegariam nas semanas seguintes, depois dos recentes ataques em Mocímboa da Praia e outras partes da província.

A baía de Pemba é linda. Procure as imagens no Google. Em outro momento, as praias de areia branca seriam um lugar idílico para os turistas descansarem sob o sol.

Para mim, é difícil imaginá-las sem lembrar de ver as pessoas desesperadas, exaustas, arrastando-se com nada mais do que a roupa do corpo.

Aumento da violência

Centenas de milhares de pessoas foram deslocadas pela violência. A grande maioria está alojada nas comunidades que as acolheram. Os pais de uma colega em Pemba são um exemplo disso: acolheram 33 pessoas.

Havia pouco respeito pela vida ou propriedade civil nesse conflito. As casas foram incendiadas. As escolas e os estabelecimentos de saúde foram saqueados e destruídos. As terras cultiváveis foram abandonadas.

Centenas de pessoas foram mortas, feridas ou desapareceram. Algumas, incluindo crianças, foram raptadas.

O impacto na saúde mental é profundo. Quando falamos com as pessoas, o trauma é palpável. Elas têm medo. Presenciaram o horror indescritível.

Inúmeras pessoas nos contaram que tinham muito medo de dormir dentro de casa porque viram muitas serem queimadas. Em vez disso, preferiam se arriscar e dormir ao relento com cobras e mosquitos como companhia.

COVID-19

Segundo o Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), Moçambique pode ter tido apenas 20 mortes causadas pelo coronavírus (África CDC), mas isso não significa que podem levar a situação de maneira despreocupada. A pandemia torna todas as operações mais difíceis e lentas. A distribuição de ajuda leva mais tempo e não podemos chegar a tantas pessoas devido ao distanciamento físico.

Medidas de prevenção básica para prevenir a disseminação - sabão, distanciamento físico, água limpa - são luxos inalcançáveis para as pessoas deslocadas em decorrência do conflito.

O CICV ajudou na construção de um novo centro de tratamento da COVID-19 em Pemba, o que permitiu alojar 200 pacientes.

A minha missão em Moçambique terminou antes de o centro estar concluído, portando não o vi em funcionamento. Espero que sirva para a comunidade por muitos anos.

Agora de volta à casa, é difícil falar sobre a situação humanitária em Moçambique sem parecer que recorro a hipérboles.

Conflito brutal, desastres naturais e uma pandemia. Esta é a realidade no norte de Moçambique. Não tem como exagerar a gravidade da situação. O mundo não pode ignorá-la.