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O que precisamos saber sobre as distribuições humanitárias por via aérea

As imagens de crianças gravemente desnutridas de Madaya, que apareceram em janeiro de 2016, certamente chocaram o mundo. Essas imagens também destacaram um problema crítico nos conflitos armados atuais: o acesso humanitário. Na Síria, Iraque, Iêmen, Sudão do Sul e em outras partes do mundo, organizações humanitárias, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), enfrentam obstáculos que dificultam o acesso às pessoas que precisam da assistência vital. Algumas vezes, isso se resume a questões políticas, apesar de as normas da guerra deixarem claro que as partes em um conflito armado são responsáveis por atender as necessidades das pessoas que estão sob o seu controle.

Como parte dessa obrigação, as pessoas que participam da guerra devem "permitir e facilitar a passagem rápida e desimpedida da ajuda humanitária." Além disso, fatores ambientais e logísticos podem impedir a ajuda humanitária. Qualquer que seja o motivo, as pessoas comuns encurraladas pela guerra quase sempre sofrem se a ajuda humanitária não chegar até eles.

Em circunstâncias assim, organizações humanitárias e, às vezes militares, recorrem ao lançamento aéreo de ajuda nas últimas décadas; ou seja, lançar artigos de ajuda humanitária de aeronaves sobre zonas de lançamento designadas.

O lançamento a éreo de assistência tem vantagens: quando a infraestrutura é deficiente ou inexistente, quando condições climáticas fazem com que algumas comunidades estejam temporariamente isoladas ou quando a ajuda humanitária não consegue chegar às comunidades devido à falta de segurança, os artigos vitais podem ser entregues com urgência por lançamentos aéreos.

Há muitos exemplos bem-sucedidos de lançamentos aéreos que salvaram vidas, como as entregar do PMA em 2012 de 345 toneladas de alimentos para pessoas deslocadas na região de Vakaga, no norte da República Centro-Africana, ou os lançamentos aéreos do CICV em partes do Sudão do Sul. Mais recentemente, algumas pediram lançamentos aéreos humanitários na Síria para ajudar as pessoas encurraladas nas áreas sitiadas.

 

 No entanto, os lançamentos aéreos, de nenhuma maneira, são a forma ideal de levar ajuda. Eles representam desafios logísticos singulares, são caros, têm riscos para a segurança dos civis, podem estar em conflito com as melhores práticas humanitárias e, no longo prazo, podem terminar causando mais danos que bem. Ao mesmo tempo, os lançamentos aéreos humanitários podem ser, em alguns casos, o único jeito de chegar às populações desesperadas. Com informações baseadas na ampla experiência em prestação de ajuda fundamentada em princípios, mas também nos próprios lançamentos aéreos de ajuda no Sudão do Sul e no Afeganistão, o CICV acredita que os pontos a seguir são cruciais quando se considera se é adequado ou não o lançamento aéreo em um determinado contexto.

1. Os lançamentos aéreos de ajuda humanitária devem ser o último recurso

Os lançamentos aéreos devem ser empregados somente como último recurso, quando não houver outra opção e quando o acesso à população afetada é inviável por terra. Existem vários motivos para isso. Em primeiro lugar, as organizações humanitárias estão limitadas quanto aos tipos de ajuda que podem distribuir. Determinados alimentos perecíveis e óleos que podem ser essenciais para a dieta de uma pessoa não pode ser entregues por qualquer tipo de aeronave, já que podem se estragar quando lançados da altitude. Segundo, os lançamentos aéreos são tecnicamente difíceis e requerem pilotos especializados com habilidades específicas para esse tipo particular de operação. Mesmo com essa equipe capaz, as coisas podem dar errado, como aconteceu com um lançamento aéreo recente realizado pelo PMA em Deir Ezzor, leste da Síria, onde uma população sitiada carecia de estoques suficientes de alimentos. A ajuda humanitária não chegou às pessoas que deveriam recebê-las devido a dificuldades técnicas que resultaram em 21 paletes avariados, que caíram longe dos objetivos ou desapareceram.

 

Unity State, Leer. sacos de alimentos sendo lançados de um avião do cicv. ©Zocherman, Jacob/CICV

 Além disso, os profissionais humanitários buscam avaliar as necessidades da população antes e depois da distribuição da ajuda. É difícil realizar avaliações de necessidades quando não há acesso terrestre. No Sudão do Sul, a equipe do CICV está no terreno para receber a ajuda e monitorar a distribuição, mas isso não é possível em contextos nos quais o acesso humanitário está bloqueado. No entanto, algumas formas de avaliação – mesmo que de maneira remota - devem ser realizadas para garantir que as necessidades da comunidade sejam supridas pelos artigos entregues (tanto o tipo como a qualidade da assistência). O ideal é que a equipe esteja presente no terreno durante a entrega e, em seguida, no monitoramento pós-distribuição (para garantir, por exemplo ,que as autoridades não confisquem ou redirecionem os artigos destinados aos civis).

Avaliar essas questões com precisão é um desafio importante quando o acesso por terra é impossível. Do contrário, grupos nefastos que tentam desviar a ajuda do seu destino planejado podem explorar o fato de os artigos humanitários terem sido lançados, dando a impressão de que ninguém estaria lá para cuidar deles. Se não for possível ter uma equipe no terreno durante e depois das distribuições, meios alternativos para fazer monitoramento devem ser empregados (como pesquisas remotas, reuniões comunitárias ou terceiros confiáveis, etc).

 

2. A assistência não deve causar dano 

Unity State, Leer, Sudão do Sul. Voluntários da Cruz Vermelha do Sudão do Sul empilham mercadorias antes de uma distribuição do CICV. ©Zocherman, Jacob/CICV

Um preceito central de qualquer atividade humanitária é o princípio de "não causar dano". Os riscos de danos não intencionais são particularmente mais altos durante os lançamentos aéreos e devem ser cuidadosamente levados em consideração. Deve haver algum controle sobre a distribuição de mercadorias lançadas para as pessoas mais necessitadas e alguma maneira de regular como a assistência é usada posteriormente. Por exemplo, entregar de forma repentina e sem supervisão determinados tipos de alimentos para pessoas com desnutrição ou até mesmo famintas pode ter graves riscos para as vidas delas. Esses riscos precisam ser ponderados com relação a não entregar nada usando os lançamentos aéreos ou o atraso que uma distribuição no terreno pode implicar. Os lançamentos aéreos também apresentam um verdadeiro perigo físico para as pessoas necessitadas; uma equipe qualificada, voluntários e contatos na comunidade local precisam estar no terreno para controlar a "zona de lançamento" de modo a evitar ferimentos desnecessários e para garantir a distribuição ordenada e pacífica da assistência.

3. Os lançamentos humanitários devem ser imparciais

Outro preceito central é que a ajuda humanitária deve ser distribuída para os civis sem distinções adversas ou, em outras palavras, de maneira imparcial. Isso inclui a prestação de assistência humanitária, seja ela realizada diretamente ou facilitada por uma parte beligerante. Qualquer organização que esteja considerando recorrer aos lançamentos aéreos devem analisar com cautela as consequências, no curto e no longo prazo, para a situação em geral do conflito. Este fator é particularmente importante para as populações cujo acesso é difícil devido a cercos ou barricadas; a prestação de ajuda exclusiva para determinadas áreas, vista como um favorecimento de um lado ou a outra parte, podem entrincheirar a dinâmica do conflito que originou o cerco em primeiro lugar, mesmo se a ação suprir as necessidades imediatas daquela população em particular.

A ação humanitária não deve nunca ser percebida como uma ação que dá a impressão de que existam civis "bons" e "maus". Isso, claro, se aplica a qualquer tipo de distribuição, mas é particularmente pertinente para as comunidades cujo acesso é difícil devido a um cerco ou a uma barricada de uma parte beligerante.

4. Os lançamentos aéreos não podem substituir a necessidade do acesso humanitário

 

Unity State, Leer. Mulheres recolhem sorgo e óleo algumas horas depois de um lançamento aéreo realizado pelo CICV. ©Zocherman, Jacob/CICV

Os lançamentos aéreos são um meio para levar assistência vital em uma situação na qual não existe outra opção: eles não devem substituir a necessidade de acesso terrestre às pessoas carentes. Como destacado acima, o acesso humanitário terrestre é a melhor opção para a realização de avaliações completas das necessidades das pessoas, levando assistência direcionada e podendo proporcionar um incrível apoio psicológico. A ajuda humanitária não se trata simplesmente de levar assistência, mas pode, em alguns casos, tratar de recuperar a esperança e a dignidade por meio do contato com o mundo. De fato, os civis que o CICV encontrou em Madaya, na Síria, em janeiro, contaram aos nossos delegados que o fato de vê-los, conversar com eles e até mesmo tocá-los foi tão importante quanto a ajuda material. Os lançamentos aéreos não podem diminui o acesso - conquistado com dificuldade - dos atores humanitários existentes no terreno.

Em outras palavras

Ao mesmo tempo em que os lançamentos aéreos podem oferecer ajuda no curto prazo, eles não são uma solução no longo prazo quando os próprios combatentes restringem o acesso humanitário, como no caso da Síria. O acesso terrestre desimpedido é necessário com urgência para entregar a ajuda de maneira efetiva às pessoas que mais precisam na Síria. Todas as partes partes em conflito na Síria devem combater segundo as normas, o que inclui terminar imediatamente com os cercos como forma de guerra que deixam as pessoas comuns em toda a Síria sem acesso às necessidades mais básicas, como alimentos, água e remédios.