Declaração

Operações de paz: Declaração do CICV nas Nações Unidas, 2015

Debate geral sobre a revisão abrangente da totalidade da questão das operações de paz em todos os seus aspectos.

Nações Unidas, Assembleia Geral, 70ª sessão, Quarto Comitê, item 56 da agenda, declaração do CICV, Nova York, 2015.

Neste ano, considerado transformador para as Operações de Paz das Nações Unidas, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) aprecia enormemente a inclusão demonstrada nos processos do Painel Independente de Alto Nível relativo às Operações de Paz e subsequentes relatórios do Secretário-Geral da ONU. O CICV confirma a sua disposição para continuar assessorando as principais partes interessadas nas respectivas áreas de conhecimento durante a próxima fase do processo de reforma das Operações de Paz.

Como organização humanitária neutra, imparcial e independente que protege e assiste as vítimas dos conflitos armados, o CICV está presente regularmente nos contextos onde são realizadas as operações de paz da ONU. Embora tenhamos missões e mandatos distintos, as nossas operações humanitárias se deparam, com frequência, com desafios semelhantes, tais como: conflitos armados de longa duração, contextos cada vez mais perigosos para os nossos funcionários e desafios constantes para chegar às pessoas necessitadas. Além disso, as operações de paz da ONU também recebem mandatos que são multidimensionais e complexos cujas tarefas podem incluir: a "proteção dos civis", o uso da força, a mediação, o Estado de Direito e a garantia do acesso para a prestação de serviços básicos, para citar apenas algumas delas.

Com relação ao uso da força, observamos nos últimos anos que as operações de paz contemporâneas exigem cada vez mais componentes policiais e militares para recorrer à força. Relativo a isso, a revisão do Painel de Alto Nível ressaltou com especial atenção o fato de que determinadas tarefas robustas atribuídas às forças da ONU correm o risco de torná-las - assim como a Missão como um todo - partes do conflito armado. Os integrantes das operações de paz da ONU - tropas e policiais - também recebem regularmente a tarefa de aplicação da lei no curso da sua missão. Com isso em mente, o CICV reitera a importância de esclarecer e entender o marco jurídico que rege o uso da força e em todos os contextos em que haja Operações de Paz da ONU. Isso inclui determinar a circunstância e o modo em que o Direito Internacional Humanitário (DIH) se aplica à uma Missão da ONU, em particular quando esta receber um mandato robusto.

Nesse sentido, o CICV lembra que a aplicabilidade do DIH para as forças da ONU, assim como a quaisquer outras forças armadas, é determinada pelos fatos objetivos no terreno, independente do mandato que o Conselho de Segurança atribua a elas ou do termo empregado para designar a parte ou partes opositoras. De modo a proteger todas as pessoas afetadas por conflitos armados, o DIH é aplicado sem distinção adversa quando as condições para a sua aplicação forem cumpridas. A natureza do conflito armado ou as causas defendidas pelas partes não modificam o fato de que o DIH - quando aplicável - regulará a participação dessas durante o tempo em que continuarem sendo parte do conflito.

O CICV chama a atenção para uma questão importante que não foi tratada no relatório do Painel: As missões da ONU requerem cada vez mais que se recorra à detenção de indivíduos. Os indivíduos podem ser criminosos comuns ou pessoas privadas de liberdade ao serem capturadas ou se renderam por motivos relacionados a um conflito armado, incluindo a transferência ao Tribunal Penal Internacional. O CICV reconhece que essa tendência implica em desafios complexos de ordem prática e jurídica. Enfatizamos que os locais de detenção devem ser operados em conformidade com as normas e padrões internacionais aplicáveis, incluindo o DIH. Nesse sentido, o CICV acolhe com satisfação os esforços feitos pela ONU para estabelecer um marco com essa finalidade, notavelmente com a elaboração dos Procedimentos Operacionais Padrões Interinos relativos à Detenção nas Operações de Paz da ONU, de 2010, ademais de outros documentos. O CICV incentiva a plena aplicação e implementação dos procedimentos, em especial no que tange o tratamento humano de todos os detidos e o respeito pelo princípio de non-refoulement quando considerar a transferência de indivíduos sob o controle das Missões da ONU.

De modo a cumprir com esses requisitos, é crucial que as Operações de Paz da ONU estejam adequadamente preparadas em termos de orçamento, infraestrutura, capacidade logística e equipes capacitadas. Os Estados Membros têm a obrigação primordial de garantir um treinamento adequado para as Operações de Paz da ONU. Na qualidade de promotor e guardião do DIH, o CICV continuará oferecendo o seu apoio e conhecimento para o treinamento dos membros das operações de paz da ONU durante a fase anterior à participação da missão e in situ, incluindo o destaque ao Boletim do Secretário-Geral (SG) de 1999 sobre a Observância do DIH pelas forças das Nações Unidas. Nos contextos onde a Missão da ONU inclui um componente correcional em apoio às autoridades nacionais, o CICV coloca-se à disposição para coordenar com os assessores da ONU de modo a garantir que os esforços sejam complementares e para discutir a realidade do contexto com a finalidade de se obter sustentabilidade e continuidade. O CICV também considera que os acordos de transferência entre as Missões da ONU e os Estados receptores podem ser uma ferramenta essencial para proteger os detidos e ajudar a garantir a legalidade das transferências para as autoridades locais.

As operações de paz da ONU recebem cada vez mais o mandato para tomar todas as medidas necessárias para proteger a população civil na área de operações, incluindo assegurar que as partes no conflito respeitem o DIH. Esta aspiração coletiva de proteger os civis foi reafirmada como um princípio básico do DIH e uma responsabilidade para a ONU pelo Painel de Alto Nível e relatórios do SG. Com base nas suas observações no terreno, o CICV considera que essas conclusões são uma maneira oportuna de tornar mais operacional a obrigação de respeitar e fazer respeitar o DIH contida no artigo 1º comum às Convenções de Genebra de 1949. Por exemplo, o papel particular da Missão da ONU, mediante o diálogo com as autoridades políticas do alto escalão e as forças armadas as quais pode estar prestando apoio, a coloca em uma posição única para cumprir com a sua obrigação de fazer respeitar o DIH, particularmente em relação ao respeito pela proteção dos civis durante o planejamento e a condução das operações militares. Nessas circunstâncias, a Missão da ONU está especialmente bem situada para exercer influência, na medida do possível, para pôr um fim às violações do DIH e prevenir a ocorrência ou reiteração das violações de DIH.

O CICV concorda com a afirmação do Painel de Alto Nível de que as organizações humanitárias desempenham funções essenciais - embora complementares - na proteção dos civis e que, quando apropriado, a coordenação oportuna entre as organizações e as missões de paz da ONU é indispensável. Contudo, é importante que esta coordenação não tenha um impacto sobre como as organizações humanitárias independentes e imparciais operam e sobre a percepção de que trabalhem de acordo a esses princípios. As funções e responsabilidades distintas de cada ator deverão ser conhecidas amplamente nas comunidades locais onde estejam presentes.

O CICV também compreende a ênfase dada nos relatórios mencionados anteriormente em relação à necessidade das Operações de Paz trabalharem em estreita cooperação com as comunidades locais. Reconhecemos que as pessoas em funções militares, políticas, humanitárias e de aplicação da lei devam estar próximas à população que buscam proteger. Ao mesmo tempo, deve-se avaliar se - em alguns contextos - a associação próxima à missão multidimensional poderá representar algum risco pessoal para os indivíduos da comunidade local. Se este for o caso, a aplicação do princípio de "não causar danos" será crucial para mitigar os riscos. Uma opção é que a ligação com as comunidades locais seja feita por funcionários civis.

Com relação a isso, é importante mencionar os Padrões Profissionais para o Trabalho de Proteção do CICV, publicado em 2013. Esses padrões, que refletem o consenso da maioria das agências humanitárias e de proteção dos direitos humanos, tratam, entre outras coisas, da relação entre as missões da ONU e as organizações humanitárias. Propiciam orientações essenciais relativas à divisão de responsabilidades, sendo um importante marco de referência para a interação eficaz entre as várias agências e organizações envolvidas no trabalho de proteção. À medida que ao processo de revisão das Operações de Paz da ONU avança em direção à fase de implementação, temos a esperança de que os Padrões auxiliarão na elaboração e implementação das estratégias de proteção dos civis pelas Operações de Paz das Nações Unidas, entre outros aspectos.

O CICV, portanto, renova o seu compromisso de estabelecer e manter um diálogo altamente construtivo sobre as questões operacionais, jurídicas, de proteção e de treinamento relativas às operações de paz com as Nações Unidas em Nova York e no terreno. O CICV, do mesmo modo, coloca-se à disposição para estabelecer um diálogo franco e aberto com os Estados Membros, em especial com os países que contribuem com tropas e policiais, com os membros do Conselho de Segurança e com o C-34 sobre essas importantes questões.