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Ucrânia: nem todas as cicatrizes da guerra são visíveis

A saúde mental é fundamental para a nossa saúde geral. Islam Alaraj, que lidera o trabalho psicossocial e de saúde mental do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) na Ucrânia, explica a importância do apoio à saúde mental no país.

Todo mundo se assusta quando está só no escuro. Nos últimos quatro meses, a população na Ucrânia passou a conhecer a vida no escuro. A escuridão fria de um abrigo subterrâneo. As misteriosas ruas da cidade sofrem com um blecaute.

Enquanto a população na Ucrânia se acostumou a se mover entre a luz e a escuridão, a escuridão psicológica interna provocada pela guerra é mais difícil de mudar.

Cada dia traz novas cicatrizes físicas. A destruição e os ferimentos são visíveis. Porém, muito menos óbvias — mas talvez mais destrutivas — são as feridas invisíveis da guerra.

Uma ferida psicológica pode ser mais profunda, durar mais e prejudicar as pessoas muito além da vítima direta. Em lugares afetados por conflitos, as necessidades de saúde mental aumentam à medida que a violência cria novos traumas e agrava condições pré-existentes.

Quase todas as pessoas afetadas por uma emergência experimentarão reações de estresse. Para a maioria, os sintomas diminuirão com o tempo. Mas se você mora em uma zona de conflito, tem três vezes mais chances de sofrer com um problema de saúde mental. No entanto, é muito menos provável que você obtenha a ajuda necessária, pois o conflito esgota e destrói os recursos da comunidade.

Obter ajuda o quanto antes 

No passado, as respostas humanitárias enfatizavam as formas "tradicionais" de ajuda – comida, água, abrigo, assistência à saúde e ajuda para recuperar os meios de subsistência. Claro, tudo isso é vital, mas nem sempre é a prioridade número um das pessoas.

Como exemplo, uma senhora ucraniana idosa disse a um colega, que estava registrando pessoas para assistência em dinheiro:

“Você acha que preciso de dinheiro? Você está enganado. Quero dormir.”

Os sintomas relacionados ao trauma assumem várias formas: retraimento e isolamento, hipervigilância, depressão, confusão, ansiedade, raiva, fadiga, distúrbios de sono, flashbacks, para citar apenas alguns.

Todos os dias, a nossa linha direta de saúde mental e apoio psicossocial — operada por quatro especialistas em psicologia do CICV — recebe ligações de pessoas que apresentam esses sintomas. Nas primeiras semanas, essa linha direta era o nosso único meio de prestar apoio psicológico, pois a insegurança restringia o nosso acesso. Não precisamos resolver os problemas das pessoas no início. Só precisamos ouvir e entender, isso é tudo que qualquer pessoa quer.

A maioria das ligações são de mulheres pedindo conselhos sobre como ajudar as suas crianças que estão lutando com o sono ou apresentando problemas comportamentais. As crianças são particularmente vulneráveis. Não são apenas mais sensíveis a experiências traumáticas, mas também serão afetadas pela dificuldade que os seus pais enfrentam para lidar com isso. Quando os pais se abrem sobre as suas crianças, em geral apresentam as suas próprias dificuldades emocionais. Alguns casos são mais graves: um homem enterrou o corpo da própria esposa no jardim porque ninguém conseguia recolher o cadáver ou providenciar um enterro adequado. Ele estava completamente destroçado e claramente lutando para subsistir.

É vital que as pessoas obtenham ajuda precoce para auxiliar no processo de recuperação, pois os sintomas do trauma podem piorar e levar a problemas de saúde mais amplos, como pressão alta, sintomas psicossomáticos e transtorno do estresse pós-traumático. Esmiuçando: a saúde mental é fundamental para a saúde geral. Enfocar os problemas hoje ajudará a evitar uma crise amanhã.  

Reconstruir a força interior e exterior

No início de abril, iniciamos o nosso programa de saúde mental e apoio psicossocial em várias áreas fortemente atingidas pelo conflito. O programa inclui: apoio psicológico direto; treinamento psicossocial para voluntários da comunidade local, aumento da conscientização sobre saúde mental e sessões de psicoeducação para promover a saúde mental positiva e a resiliência. Também prestamos apoio direto às famílias após identificarem os restos mortais dos seus entes queridos.

Contar com a disponibilidade de um especialista em psicologia para as pessoas conversarem é vital, pois o processo de identificação é extremamente doloroso e algo que ninguém deve passar sozinho. É difícil compreender os eventos traumáticos que as pessoas vivenciaram. Para quem vivencia, tais experiências podem destruir a sua percepção da vida. Mas com a ajuda psicológica, uma pessoa pode reconstruir o seu mundo interior para criar uma imagem holística que adicionará esses eventos à nossa experiência de vida, para que não dominem para sempre.

A nossa força externa vem da comunidade. Amizades, familiares e conexões da comunidade de onde você pode extrair força. Mas quando toda a sua comunidade passou pelo mesmo trauma, o que fazer? O caminho para a recuperação será mais difícil e serão necessárias iniciativas comunitárias, como a criação de grupos de apoio, uma maior conscientização sobre os sintomas de traumas para que as pessoas possam cuidar umas das outras e treinamento de voluntários para prestar apoio básico de saúde mental.

Em outras zonas de conflito, apoiamos os esforços para reconstruir estruturas danificadas com significado para a comunidade, a fim de reavivar o sentimento de pertencimento. Levará tempo para que as pessoas com sintomas de trauma reconstruam a sua força – semanas, às vezes meses. Juntamente com colegas da CruzVermelha Ucraniana, apoiaremos as pessoas nesta jornada. No entanto, sabemos que os serviços que podemos prestar hoje são uma gota no oceano. Existem claramente necessidades de saúde mental que não podemos atender e lacunas nos serviços de saúde que não podemos preencher.

A população da Ucrânia — ou de qualquer zona de conflito — deve ter acesso a serviços de saúde mental e apoio psicossocial. Em tempos de guerra, o apoio à saúde mental pode salvar vidas. É por isso que deve ser integrado aos esforços humanitários em meio ao conflito e devem continuar depois, quando as comunidades tentarem superar os traumas da guerra.

Sabemos que as pessoas em zonas de guerra são notavelmente resilientes. Mas às vezes todos precisamos de uma ajudinha para escapar da escuridão.

Islam Alaraj é responsável pelo programa de saúde mental e apoio psicossocial do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) na Ucrânia.