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Vacinas contra Covid-19 e DIH: garantir acesso igualitário a países afetados por conflitos

Enquanto os países continuam lutando para conter a pandemia de Covid-19, o foco do mundo está no desenvolvimento de uma vacina. A pesar de o vírus afetar todos os países e pessoas sem discriminação, a contenção da pandemia apresenta desafios específicos em situações de conflitos armados.

Assim que a vacina estiver disponível, como poderemos garantir que todos – incluindo as pessoas que vivem em zonas de guerra – tenham acesso igualitário a ela? E quais são as obrigações em relação aos profissionais e estabelecimentos de saúde envolvidos em sua aplicação? Neste artigo, o assessor jurídico do CICV, Alexander Breitegger, procura orientação no Direito Internacional Humanitário.

Há meses que pesquisadores em todo o mundo vêm trabalhado desesperadamente para desenvolver uma vacina contra a Covid-19. No momento em que escrevo estas linhas, são mais de 170 as vacinas candidatas rastreadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). É uma corrida contra o tempo e uma espera em que todos fomos forçados a participar.

Quando uma vacina estiver disponível, devemos aplicar o que temos aprendido com os nossos erros de crises de saúde anteriores. Já vimos no passado como a luta ávida pelo acesso a terapias, do HIV à gripe aviária H5NI, empurrava os países mais vulneráveis – aqueles sob as garras dos conflitos armados – para o fim da fila. Também vimos que o medo, as ideias erradas e a desconfiança, como aconteceu durante a epidemia do ebola, podem levar à estigmatização e à violência contra os profissionais de saúde, o que exacerba o peso sobre os sistemas de saúde já sobrecarregados por causa de anos de conflito e violência contra os prestadores de assistência à saúde.

Embora não exista um plano para superar esses desafios, o Direito Internacional Humanitário (DIH) fornece orientações importantes para as partes em conflito armado que não devem ser ignoradas nos esforços para distribuir e aplicar uma futura vacina contra a Covid-19, de modo a garantir o acesso às populações afetadas, sem discriminação, e proteger os profissionais de saúde que as aplicam.

Garantir o fornecimento de vacinas sem discriminação: uma obrigação legal

Em geral, no âmbito do direito à saúde, os Estados têm a obrigação de tomar as medidas necessárias para evitar, tratar e controlar as epidemias, bem como garantir a prestação de assistência à saúde a todas as pessoas sob sua jurisdição, sem discriminação, inclusive por meio da imunização contra as principais doenças transmissíveis.

Em situações de conflitos armados, o Direito Internacional Humanitário inclui obrigações específicas relacionadas à prevenção de doenças transmissíveis e epidemias para certos grupos de pessoas e em determinadas situações. As regras que regulam a detenção exigem que as Potências detentoras protejam a saúde e a higiene dos detidos como parte das necessidades básicas que devem garantir às pessoas privadas de liberdade. Por exemplo, o Artigo 29 da Terceira Convenção de Genebra estabelece que as Potências detentoras devem tomar todas as medidas de higiene necessárias para evitar epidemias nos campos de prisioneiros de guerra, o que incluiria a aplicação de vacinas quando necessário para evitar ou conter uma nova propagação de doenças transmissíveis.

Em situações de ocupação, de acordo com o Artigo 56 da Quarta Convenção de Genebra, as Potências ocupantes têm a obrigação de garantir e manter a saúde e higiene públicas no território ocupado, com a cooperação das autoridades nacionais e locais. Elas devem tomar as "medidas preventivas necessárias para combater a propagação de doenças contagiosas e as epidemias". Tais medidas compreendem a distribuição de medicamentos e vacinas, o estabelecimento de estoques de material médico (incluindo vacinas) ou o envio de equipes médicas para aplicar vacinas em áreas de propagação epidêmica.

Essas obrigações, baseadas no DIH e complementadas pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, devem ser implementadas sem distinção adversa, isto é, sem distinção por motivos que não sejam considerações relacionadas à saúde. Na verdade, considerações relacionadas à saúde podem exigir tratamento priorizado ou mesmo diferenciado para garantir tratamento igualitário de facto. Isso significa priorizar a vacinação de pessoas que podem estar particularmente em risco, como idosos, pessoas com comorbidades ou os próprios profissionais de saúde. Também exige que os Estados tomem medidas positivas específicas para as pessoas que têm dificuldades específicas para acessar os programas de vacinação, que incluam crianças, idosos ou pessoas com deficiência.

Profissionais e estabelecimentos de saúde protegidos pelo DIH

Durante a pandemia de Covid-19, muitos profissionais de saúde e pessoas que usaram seus serviços sofreram estigma que, às vezes, levaram a ataques abertos, assédio e ameaças por parte de civis e portadores de armas.

De acordo com o Direito Internacional Humanitário, os transportes, profissionais e estabelecimentos de saúde envolvidos no transporte, distribuição ou aplicação de vacinas gozam de proteção específica quando são designados exclusivamente por uma autoridade competente de uma parte em conflito para um ou mais propósitos médicos. A proteção específica significa que: 1) devem ser respeitados e protegidos em todas as circunstâncias (a menos que cometam ou sejam usados para cometer atos prejudiciais ao inimigo, fora de suas funções humanitárias); 2) têm o direito de usar o emblema da cruz vermelha, do crescente vermelho ou do cristal vermelho; e 3) uma perda de proteção específica somente se torna efetiva quando um aviso não for cumprido.

Vacinação como atividade médica protegida

Além da busca, coleta, transporte, diagnóstico e tratamento de feridos e doentes, o DIH reconhece a "prevenção de doenças" como uma finalidade médica. Isso inclui a aplicação de vacinas, mesmo quando isso beneficie membros saudáveis da população civil ou combatentes, além daqueles que já adoeceram.

O pessoal médico civil ou militar designado exclusivamente para a vacinação de pessoas – e para qualquer outra finalidade médica – goza de proteção específica. Isso também se aplica para aquelas pessoas designadas exclusivamente para a administração de estabelecimentos de saúde, e para a operação e administração de transportes médicos. Para o caso de estabelecimentos de saúde, o Artigo 8(e) do Protocolo Adicional I contém uma definição que também engloba "centros e institutos de prevenção", isto é, centros de saúde primária de prevenção de doenças e, em particular, "centros de vacinação" envolvidos na prevenção ou contenção de epidemias. Além disso, os "armazéns médicos" e "depósitos de material médico ou farmacêutico" de unidades de saúde também são reconhecidos como estabelecimentos de saúde, como locais onde o material médico, incluindo vacinas, é armazenado ou de onde os estabelecimentos de saúde podem obter material. Vários especialistas também argumentaram que os estabelecimentos envolvidos na pesquisa, teste e produção de vacinas podem ser qualificados como estabelecimentos de saúde. Por último, as aeronaves, os navios ou os veículos designados exclusivamente para o transporte de pessoal médico, incluindo aqueles envolvidos na prevenção de doenças ou material médico com uma finalidade médica preventiva, como as vacinas, devem ser considerados como transportes médicos.

Respeitar e proteger os profissionais de saúde e o material médico

"Respeitar" significa não atacar pessoas ou objetos envolvidos na garantia de acesso às vacinas, bem como não ameaçar, assediar nem impedir indevidamente o desempenho de suas funções. Essa proibição não impede a verificação das partes em conflito do exclusivo envolvimento em atividades de prevenção de doenças, como a vacinação, por meio de entradas armadas em estabelecimentos de saúde ou em postos de controle militares, desde que as interrupções ou atrasos em suas atividades de saúde sejam minimizados.

"Proteger" implica tomar todas as medidas cabíveis para facilitar o seu funcionamento, como ajudar ativamente a garantir a entrega de material médico, incluindo vacinas, e evitar que os profissionais de saúde e o material médico sofram danos. Também implica a tomada de medidas cabíveis para garantir que os profissionais de saúde sejam respeitados, inclusive por terceiros como civis que possam estar atacando ou assediando o pessoal médico.

Atividades éticas de saúde também estão protegidas

Independentemente da qualificação para receber proteção específica como pessoal médico, nenhum profissional de saúde pode ser obrigado a agir de forma contrária à ética médica ou ser ameaçado, assediado ou punido por realizar atividades médicas compatíveis com a ética médica, incluindo aquelas relacionadas à vacinação. A ética médica inclui fazer o melhor uso possível dos melhores serviços de saúde disponíveis; prestar assistência à saúde sem discriminação e, sempre que possível, com o consentimento explícito do envolvido; ou respeitar o sigilo médico, a menos que exista uma ameaça real e iminente de dano à pessoa envolvida ou a terceiros. Os profissionais de saúde não poderiam, por exemplo, ser obrigados a desistir de vacinar determinados membros das populações afetadas pelo fato deles pertencerem à parte adversária em um conflito, nem ser punidos por fazê-lo.

Também é importante que os profissionais de saúde não violem deveres éticos, como revelar publicamente a identidade das pessoas vacinadas ou suspeitas de terem contraído o vírus, já que isso pode expor os vacinados ou os profissionais de saúde envolvidos na vacinação à violência baseada no estigma associado à Covid-19.

Para fornecer um ambiente propício em que os profissionais de saúde possam trabalhar sem serem atacados, ameaçados ou interferidos em seus deveres éticos, e ter uma melhor compreensão da sua função e aceitação por parte das populações, é importante oferecer informações precisas, e dissipar ideias erradas sobre as vacinas e a função dos profissionais de saúde e o material médico. Na atual pandemia, uma comunicação mais proativa poderia contribuir amplamente para conter a estigmatização dos profissionais e estabelecimentos de saúde, bem como a violência contra eles.

Garantir que a vacina chegue às pessoas em países afetados por conflitos

O Direito Internacional Humanitário deve ser uma orientação a considerar para garantir o acesso das populações afetadas, sem discriminação, a uma futura vacina contra a Covid-19 em todos os territórios dos países afetados por conflitos armados. Quando os Estados afetados por conflitos armados não podem garantir as necessidades básicas, incluindo necessidades médicas, da sua população em relação à Covid-19, eles devem outorgar consentimento a uma oferta das organizações humanitárias imparciais para realizar atividades humanitárias, incluindo aquelas relacionadas com a vacinação, bem como atenuar as restrições tanto quanto possível.

O Direito Internacional Humanitário também fornece um marco elaborado de proteção de profissionais e estabelecimentos de saúde envolvidos em esquemas de vacinação. Os beligerantes devem abordar efetivamente o estigma em torno da Covid-19 e aqueles envolvidos na contenção da pandemia como uma condição prévia para o desempenho, sem obstáculos indevidos, da função dos profissionais de saúde envolvidos na vacinação.

Com os países ricos já fechando acordos para uma vacina contra a Covid-19 que poderia levar a limitações, precisaremos usar todas as nossas ferramentas disponíveis para facilitar o acesso igualitário. Em situações de conflitos armados, o Direito Internacional Humanitário é uma das ferramentas para garantir que as pessoas em países afetados por conflitos também obtenham o benefício de uma vacina.

Vea también:

[1] CG III, art.29; CG IV, art. 85; Protocolo adicional (PA) II, art. 5(1)(b); DIH consuetudinario, norma 121, .
[2] Comentario del CG III (publicado en 2020), art. 29, párr. 2197; Comentario del CG III (publicado en 1960), art. 29, pp. 206-207] (en inglés).
[3] V. también el CG IV, art. 55, para consultar más obligaciones generales de las potencias ocupantes relativas al abastecimiento de productos médicos.
[4] V., p. ej., CG I, art. 12(4); CG III, art. 16; CG IV, art. 27(3).
[5] GC I, art. 24; PA I, art. 8(e); comentarios de las normas 25, 28, 29, DIH consuetudinario.
[6] Comentario del art. 8(e), PA I, párr. 376].
[7] Second Statement on International Law Protections of the Healthcare Sector During Covid-19: Safeguarding Vaccine Research (Segunda declaración de Oxford sobre las protecciones del derecho internacional para el sector de la asistencia de salud durante la pandemia de Covid-19: salvaguardar la investigación sobre vacunas) (en inglés).
[8] V., p. ej., el comentario del art. 19, CG I, párr. 1805.
[9] CG I, art. 18(3); PA I, art. 16; PA II, art. 10 , y comentario asociado, párr. 4687; DIH consuetudinario, norma 26.
[10] V. también, CICR, El DIH establece salvaguardias fundamentales durante las pandemias.