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Violência sexual e conflito armado: podemos evitar um retrocesso da Covid-19?

Três meses após o início da pandemia, a chefe de Enfrentamento da Violência Sexual do CICV publicou um apelo às agências humanitárias para que abordem com urgência o risco de violência sexual e de gênero que aumenta à sombra da Covid-19. Ela pediu que o CICV e outras organizações intensifiquem os esforços para garantir a prestação contínua de serviços aos sobreviventes da violência sexual.

Hoje, está claro que a pandemia de Covid-19 possibilitou duas tendências opostas: novos episódios de violência sexual em lugares afetados por conflito e violência; e menos serviços disponíveis para as vítimas e os sobreviventes. A fim de marcar o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher e o início de 16 dias de ativismo contra a violência de gênero, a assessora do CICV para o Enfrentamento da Violência Sexual, May Maloney, destaca os desafios e explica como o Direito Internacional Humanitário (DIH) pode ajudar a abordá-los.

Nada disso deveria causar surpresa: emergências e crises têm uma história bem documentada de aprofundamento das desigualdades e exacerbação dos riscos. Ainda assim, oito meses após o início da pandemia de Covid-19, nos deparamos com uma dicotomia assustadora: um aumento da violência sexual em lugares afetados por conflito e violência, juntamente com uma redução dos serviços disponíveis para vítimas e sobreviventes. Testemunhamos um trágico retrocesso dos avanços obtidos na prevenção e resposta à violência sexual e de gênero em ambientes humanitários. E não podemos permitir que isto aconteça.

Hoje celebramos o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher e o início de 16 dias de ativismo contra a violência de gênero. A data recorda a força e a resiliência de pessoas e comunidades, mas também a magnitude da violência sexual e de gênero, cujas vítimas são diversas, incluindo não apenas mulheres e meninas, mas também homens, meninos e minorias sexuais e de gênero. A crise global da violência sexual e de gênero requer uma abordagem de prevenção e proteção em todas as atividades humanitárias –e o DIH oferece proteções poderosas para esse fim.

Uma pandemia nas sombras...

PO aumento da violência contra as mulheres e seus filhos desde o início da Covid-19 foi chamado de pandemia 'nas sombras' por Pramila Patten, representante especial do Secretário-Geral das Nações Unidas sobre Violência Sexual em Conflito. Especialistas em direitos humanos, incluindo a relatora especial das Nações Unidas sobre Violência contra a Mulher, descreveram a situação como uma pandemia dentro de uma pandemia e pediram 'paz em casa', implorando aos Estados que eliminem a violência de gênero por meio de planos de recuperação após a Covid-19.

Agências humanitárias estimam que, somente nos primeiros seis meses de confinamento pela Covid-19, 31 milhões de casos adicionais de violência de gênero possam ter ocorrido. Esses atos incluem violência doméstica – que é um crime em muitos lugares e pode ser uma violação do Direito Internacional dos Direitos Humanos –, assim como atos de violência sexual dentro do escopo do DIH, tais como estupro e estupro coletivo cometidos por portadores de armas, prostituição forçada e escravidão sexual.

Embora o CICV, operacionalmente, não precise esperar por tais evidências para responder (como parte de nossa posição segundo a qual o ônus da prova se inverte quando se trata de violência sexual), estamos rastreando tendências perturbadoras sobre violações do DIH, assim como informações que sugerem novos casos (incidentes) contribuindo para uma elevada e contínua prevalência de violência sexual e de gênero em áreas afetadas por conflitos. Dados de um dos programas de saúde mental e apoio psicossocial do CICV relevaram um aumento de quatro vezes no número de sobreviventes da violência, incluindo violência sexual, entre janeiro e maio de 2020, em comparação com o mesmo período de 2019. Nos mesmos lugares, proporcionamos assistência à saúde primária urgente dentro das 72 horas após o estupro para 2.001 pessoas de janeiro a junho de 2020.

Necessidades crescentes são agravadas pelos riscos de exploração e abuso sexual por aqueles que ocupam posições de poder, além de uma possível proliferação mais profunda de estratégias que geram estresse social e econômico, como casamento infantil, sexo por sobrevivência e outros tipos de sexo transacional. Já em abril, um país havia levado à corte marcial um membro de suas forças armadas acusado de estupro enquanto ele difundia e aplicava medidas de saúde pública em comunidades marginalizadas.

... e um espaço cada vez menor para ajudar

Cuando superponemos una crisis sobre otra crisis –como un conflicto armado y una emergencia de salud pública en el contexto de una emergencia climática mundial– los riesgos de violencia sexual y por motivos de género aumentan de escala, mientras que el apoyo disponible se reduce y aísla o fragmenta. Las redes de referencia que en otro momento eran sólidas –cadenas de apoyo que vinculan centros de salud al apoyo psicosocial y en salud mental y asistencia jurídica disponible a especialistas del sistema judicial pertinentes– pueden dejar de estar activas, desmoronarse, volverse "irregulares" o colapsar.

Pese al aumento de las necesidades, la prestación de servicios –por parte del CICR u otras organizaciones– se ha visto afectada por la pandemia por una serie de razones: recursos financieros, humanos y técnicos destinados a la respuesta a la COVID-19; aumento de las restricciones a la circulación, incluido el confinamiento; intranquilidad de las personas al momento de acudir a las clínicas debido a la posible exposición al virus. Estas nuevas restricciones en evolución –en un contexto en el que la violencia sexual y por motivos de género se considera en gran medida una preocupación "secundaria" o, a veces, incluso un "asunto privado"– dan lugar a una presencia reducida en el terreno y a una menor cantidad de servicios.

Para víctimas y sobrevivientes, se traduce en interrupciones de los servicios de atención y apoyo, una menor posibilidad de llegar a los centros de salud en el período crítico de 72 horas posterior a la violación, y un acceso limitado a los servicios de apoyo psicosocial y en salud mental (o una solución a distancia o por teléfono que podría poner en peligro la seguridad personal o la estabilidad financiera).

Estamos procurando atender estas carencias mediante diversas acciones: actualizar las vías de remisión y difundirlas en las comunidades en transmisiones de radio, establecer nuevas asociaciones con las Sociedades Nacionales para atender cuestiones relativas al estigma, mantener el diálogo con portadores de armas sobre la violencia sexual como una violación del DIH, y facilitar que los servicios de atención primaria de la salud que reciben nuestro apoyo puedan seguir ofreciendo cuidados vitales.

Sin un mayor apoyo económico y a los medios de sustento, como la asistencia en efectivo y la entrega de vales, existe un riesgo acentuado de estrategias de afrontamiento negativas, por ejemplo, en intercambio de favores sexuales para sobrevivir. Todos los actores en el terreno deben tomar en serio y priorizar la interacción con las comunidades, la mitigación del riesgo y el fortalecimiento de la resiliencia. Hemos comenzado la asistencia individual en efectivo y mediante vales como parte de la adaptación a este entorno.

Como o direito internacional pode ajudar?

O Direito Internacional Humanitário (DIH) é inequívoco em relação à violência sexual: ela é proibida tanto em conflitos armados internacionais como não internacionais por uma série de normas no âmbito das Convenções de Genebra e dos seus Protocolos Adicionais, e sua proibição é uma norma do Direito Internacional Humanitário Consuetudinário.

Para ser proibido pelo DIH, um ato deve ter uma conexão suficiente (muitas vezes referida com 'nexo') com um conflito armado; certos atos de violência sexual e de gênero podem ocorrer durante um conflito armado que não tenha esse nexo, situando-se, portanto, fora do escopo do DIH. Mas a legislação sobre a violência sexual cometida durante um conflito armado não se limita ao DIH; o Direito Internacional dos Direitos Humanos estabelece uma estrutura complementar relevante para a violência sexual e de gênero no contexto da pandemia global de Covid-19. Em particular, tipos de violência de gênero além do escopo do DIH, tais como violência doméstica e de parceiro íntimo – que no entanto continuam ocorrendo e, de fato, têm se agravado durante conflitos armados e outras crises, como pandemias – podem se enquadrar nas obrigações positivas dos Estados segundo os tratados internacionais de direitos humanos, incluindo o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher.

Além disso, em situações de conflitos armados, o DIH exige que os feridos e doentes, incluindo vítimas e sobreviventes de violência sexual que necessitem de atendimento médico, recebam, em toda a extensão possível e sem demora, os cuidados de saúde necessários para a sua condição. O DIH também estabelece que não será feita nenhuma distinção que não seja baseada em critérios médicos. A não discriminação dentro do marco dos direitos humanos significa que uma vítima ou sobrevivente de violência sexual tem o direito de acesso, sem discriminação, à assistência à saúde oportuna e adequada. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas enfatizou que o direito à saúde sexual e reprodutiva é parte integral do direito à saúde e inclui a obrigação de garantir assistência à saúde física e mental aos sobreviventes de violência sexual.

Com a exposição desses fatos, a imagem se torna clara. A violência sexual e de gênero é prejudicial, ilegal e generalizada. Muito mais deve ser feito para preveni-la e para atender às necessidades de seus sobreviventes, inclusive a fim de resguardar o bom trabalho nesse sentido, que agora está sob ameaça. Temos salvaguardas legais poderosas que protegem contra a violência sexual e de gênero e asseguram o acesso à assistência à saúde para os sobreviventes.

Vamos utilizá-las.

Para evitar um retrocesso da Covid-19, nunca foi tão urgente garantir que as proteções legais sejam realizadas no terreno em meio a terríveis novos incidentes de violência sexual e de gênero este ano, combinados com a redução do acesso aos serviços. Para nós, o propósito da Campanha dos 16 Dias é pedir aos Estados que tenham compromisso com o direito internacional, tanto na proteção da violência sexual e de gênero como no acesso à assistência à saúde, sem discriminação, garantindo que a legislação nacional esteja em harmonia com suas normas e seja eficaz. A campanha busca também assegurar que os sobreviventes da violência sexual tenham acesso à assistência à saúde sem discriminação, inclusive avaliando se a notificação obrigatória está a favor de seus direitos e dos direitos dos profissionais de saúde.

Enquanto isso, os cuidados de saúde sexual e reprodutiva, saúde mental e apoio psicossocial, assim como os serviços de proteção aos sobreviventes da violência sexual, são e continuarão sendo uma prioridade para o CICV, e continuaremos participando de um diálogo sobre violência sexual em conflito como um crime de guerra .

Consulte también:

• Sutrich, S, COVID-19, conflict and sexual violence: reversing the burden of proof (COVID-19, conflictos y violencia sexual: la inversión de la carga de la prueba), 19 de junio de 2020.

• Durham, H., Shining a spotlight on sexual violence in war: The 2018 Nobel Peace Prize (Enfoque sobre violencia sexual en tiempos de guerra: el Premio Nobel de la Paz de 2018), 11 de octubre de 2018.

Información: violencia sexual en los conflictos armados, 8 de abril de 2016.

Artículo publicado originalmente en nuestro blog Humanitarian Law & Policy.