Artigo

Patrimônio cultural sob ataque

Nos últimos anos foi registrada a maior destruição de patrimônios culturais desde a Segunda Guerra Mundial. Foram afetados bens móveis e imóveis, além de patrimônios culturais imateriais, arquivos e patrimônios documentais. Em muitos conflitos armados, os danos já não são apenas colaterais e os bens culturais também são atacados deliberadamente. Quase dois anos depois da Conferência Internacional em ocasião do 20º aniversário do Segundo Protocolo, de 1999, parte da Convenção de Haia de 1954, o assessor jurídico do Ministério das Relações Exteriores da Suíça, Jonathan Cuénoud, e o assessor jurídico do CICV, Benjamin Charlier, revisitam as conquistas e os obstáculos enfrentados para a implementação do Segundo Protocolo e incentivam os estados-membros da Unesco a aderirem ao Segundo Protocolo, de 1999, caso ainda não o tenham feito.

Por Jonathan Cuénoud / Benjamin Charlier

Há vinte e dois anos, com o apoio da Unesco, a comunidade internacional adotou o Segundo Protocolo da Convenção de Haia de 1954 para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, reiterando o desejo de preservar patrimônios culturais até mesmo durante as piores turbulências.

Como um tratado complementar à Convenção de Haia de 1954, o Segundo Protocolo apresentou novidades do Direito Internacional Humanitário (DIH) em relação a bens culturais, prometendo um nível mais alto de proteção em áreas administrativas, jurídicas, militares e técnicas. Os Estados só podem se tornar Partes caso tenham ratificado a Convenção de 1954, o primeiro instrumento internacional dedicado à proteção de bens culturais durante conflitos armados, que foi reforçada pelos Protocolos Adicionais de 1977 às Convenções de Genebra [1] e pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional, de 1998. O objetivo do Primeiro Protocolo da Convenção de Haia de 1954, adotado no mesmo ano, é evitar a exportação de bens culturais de um território ocupado.[2]

Por que adotar um Segundo Protocolo?

À medida que os conflitos armados se intensificaram na Europa no começo da década de 90, a efetividade da Convenção de Haia de 1954 se tornou um motivo de preocupação geral e levou o governo holandês a emitir uma reflexão sobre a necessidade de revisá-la. Quatro opções foram consideradas: fazer uma emenda à Convenção de Haia de 1954, adotar uma nova convenção, adotar um protocolo com o fim de revisar a Convenção de Haia de 1954 ou adotar um novo protocolo adicional à Convenção de Haia de 1954. A quarta opção acabou sendo escolhida porque preservaria as cláusulas da Convenção de Haia de 1954 e, ao mesmo tempo, oferecia a possibilidade de acrescentá-las aos Estados que já eram membros.

Uma das principais aspirações do Segundo Protocolo era atualizar a Convenção de Haia de 1954 com os avanços do Direito Internacional Humanitário. Também sustentou iniciativas para combater a impunidade através de um processo penal eficaz e, refletindo o caráter dinâmico das guerras, aplicou-se também a conflitos armados não internacionais. Além disso, atualizou a proteção especial oferecida pela Convenção de Haia de 1954 estabelecendo um novo sistema; o Artigo 10 do Segundo Protocolo estipula que é possível outorgar uma proteção maior a bens culturais da maior importância para a humanidade, a fim de garantir que sejam adequadamente protegidos pela lei nacional e que não sejam usados com fins militares nem como escudo para instalações militares. Essa proteção maior é outorgada a partir do momento em que entram na Lista de Bens Culturais sob Proteção Reforçada, uma decisão tomada pelo Comitê para a Proteção de Bens Culturais em caso de Conflito Armado.

Práticas recomendadas: o exemplo suíço

A Suíça faz parte da Convenção de Haia de 1954 e de seus dois Protocolos desde 1962 e 2004, respectivamente. Em 2014, a Suíça promulgou a Lei Federal de Proteção de Bens Culturais durante Conflitos Armados, Desastres e Emergências (CPPA) para incorporar as novidades apresentadas pelo Segundo Protocolo, uma revisão completa da lei anterior, de 1966. O âmbito de aplicação da CPPA é mais amplo que o do Segundo Protocolo, porque, além das situações de conflito armado, contempla também desastres e outras emergências.

De acordo com a Convenção de Haia de 1954 e seus Protocolos, cada Estado deve proteger ativamente seus próprios bens culturais de ataques armados. É possível fazer isso, por exemplo, trasladando esses bens para longe de ações militares potenciais ou existentes, ou, no caso de lugares históricos, evitando posicionar objetivos militares perto deles. Assim, a CPPA possibilita que a Suíça ofereça um lugar seguro para os bens culturais móveis de outros estados. É o primeiro país do mundo a oferecer um refúgio desse tipo. No dia 8 de março de 2019, a Suíça adotou uma estratégia nacional para definir melhor o posicionamento e os campos de ação do país na proteção de patrimônios culturais em perigo.

Perspectivas

Os objetivos de proteção inerentes ao Segundo Protocolo avançaram consideravelmente desde que ele foi adotado, há vinte e dois anos. No entanto, ainda há muito o que fazer para garantir uma proteção adequada para os bens culturais em conflitos armados em todo o mundo.

Por exemplo, é um consenso geral que, embora a ampla estrutura jurídica internacional existente – em que o Segundo Protocolo, de 1999, é uma peça central – ofereça aos Estados todas as ferramentas necessárias para proteger patrimônios culturais contra destruição e pilhagem durante um conflito armado, é necessário fazer mais esforços para implementar essa estrutura, aumentar a conscientização e, por fim, mudar o comportamento das partes em conflito.

Isso significa que, em primeiro lugar, esta estrutura jurídica precisa se tornar mais conhecida, a fim de aumentar a número de ratificações da Convenção de Haia de 1954 e de seu Segundo Protocolo. Em segundo lugar, ferramentas de capacitação e atividades de treinamento criativas e relevantes devem continuar sendo fornecidas aos Estados e a outras partes interessadas para que possam adotar internamente todas as medidas jurídicas, administrativas e políticas necessárias e concretas e para que possam traduzir na doutrina militar o interesse pela proteção do patrimônio cultural.

Em terceiro lugar, além desses aspectos preventivos, a proteção de bens culturais deve ser considerada uma parte integral da atividade humanitária quando um conflito eclode e os danos não podem ser vistos como meros efeitos colaterais lamentáveis de confrontos violentos. Para abordar esta questão com seriedade, é necessário que o risco que os bens culturais protegidos correm durante um período de hostilidades ativas e em situações de ocupação se torne um assunto de discussão entre Estados e grupos armados não estatais.

O CICV e outras importantes organizações e instituições, como Unesco, Blue Shield International, fundação ALIPH e muitas outras, têm que desempenhar um papel, dentro do âmbito de suas respectivas incumbências, de seus campos de especialização específicos e de seu alcance operacional. Para traduzir as aspirações descritas pelo Segundo Protocolo, de 1999, ONGs, organizações intergovernamentais e todos os outros atores humanitários importantes, internacionais ou locais, como as Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, precisam encontrar maneiras de otimizar o impacto coletivo de suas ações e aproveitar ao máximo as práticas, políticas e estruturas normativas que tenham sido adotadas por Estados e que sejam relevantes e positivas, a fim de ajudar outros Estados a orientar suas ações nessa mesma direção.

Os Anais da Conferência sobre 'Proteção de bens culturais: Conferência Internacional no 20º aniversário do Segundo Protocolo de 1999 da Convenção de Haia de 1954' identificaram três recomendações principais para melhorar a implementação da Convenção de Haia de 1954 e de seus dois Protocolos:

  • Em primeiro lugar, os Estados que ainda não fazem parte da Convenção de Haia de 1954 e/ou de seus Protocolos deveriam ratificá-los ou ter acesso a eles o quanto antes.
  • Em segundo lugar, os Estados signatários do Segundo Protocolo devem garantir que ele seja implementado adequadamente em seu território, especialmente através da adoção da legislação penal apropriada.
  • Em terceiro lugar, os Estados signatários do Segundo Protocolo deveriam transformar a lista de bens culturais sob proteção reforçada em um inventário internacional solicitando proteção reforçada ao Comitê para a Proteção de Bens Culturais em caso de Conflito Armado. O Comitê deveria requerer que a condição estabelecida pelo Artigo 10 (a), ou seja, que os bens sejam da maior importância para a humanidade, tenha sido respeitada quando um Estado fizer uma solicitação.

Como um primeiro passo, a Suíça e o CICV incentivam que os Estados considerem ratificar ou ter acesso à Convenção de Haia de 1954 e/ou a seus Protocolos. Cada nova ratificação é um sinal importante e extremamente necessário de apoio à proteção dos bens culturais.

Nota do editor: Este artigo foi escrito a título pessoal e não necessariamente reflete a visão do Ministério das Relações Exteriores da Suíça nem do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV).

[1] Protocolo Adicional I, Artigos 38, 53 e 85, e Protocolo Adicional II, Artigo 16.
[2] A Convenção de 1954, seu Primeiro Protocolo e seu Segundo Protocolo estão ratificados, respectivamente, por 133, 110 e 83 Estados.

Veja também
Jennifer Price-Jones, Cultural property protection: a humanitarian concern, 13 de fevereiro de 2020
Ellen Policinski, Just out! 'Conflict in Syria', a new issue of the Review, 11 de abril de 2019

Artigo publicado originalmente no nosso blog Humanitarian Law & Policy (em inglês)