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Criação de mecanismos para esclarecer a sorte e o paradeiro das pessoas desaparecidas: uma proposta de enfoque humanitário

Este artigo examina os tipos de mecanismos que podem contribuir para abordar o tema dos desaparecidos, incluindo dar respostas sobre a sorte e o paradeiro das pessoas desaparecidas. Analisa em detalhe um enfoque que as autoras observaram no terreno. Argumenta que uma abordagem com objetivos humanitários que não busque os responsáveis pelos desaparecimentos, com uma gestão adequada das informações confidenciais, poderia ser um instrumento potente para buscar e coletar informações relevantes sobre os desaparecidos em certos contextos. O artigo também propõe caminhos para novas pesquisas, com vistas a ampliar a capacidade global de dar respostas significativas com relação aos desaparecidos e suas famílias.

Este artigo foi originalmente publicado na Revista Internacional da Cruz Vermelha em 2017, 99 (2), páginas 589–618. Pessoas Desaparecidas
Autores: Monique Crettol, Lina Milner, Anne-Marie La Rosa e Jill Stockwell

Desaparecimentos vêm ocorrendo desde que a humanidade tem travado guerras ou enfrentado desastres naturais ou causados pelo homem. As pessoas desaparecidas podem ter sido capturadas ou sequestradas, sendo mantidas sem comunicação em lugares secretos (desaparecimento forçado) ou ter morrido sob custódia. Podem ter sido vítimas de execuções, enterradas em covas não identificadas (execução sumária). Às vezes são civis que fogem dos combates, crianças separadas das suas famílias, idosos ou pessoas com deficiência que não podem fugir e são deixados para trás. A população civil e os portadores de armas podem ter sido mortos durante os combates e os seus restos tratados de modo inadequado. Um número crescente de pessoas se sentem obrigadas a fugir das suas casas por causa de violência, insegurança, destruição, pobreza endêmica, governança precária e mudança das condições climáticas. E é provável que isso não seja diferente no futuro. Atualmente, o fenômeno assumiu uma dimensão ainda mais global ao se sobrepor com as migrações. Um número significativo de migrantes desaparece no percurso das rotas migratórias globais; a sua localização nunca é descoberta e, se morrem, os seus corpos nunca são encontrados. Em todas essas situações, as famílias ficam em desespero, sem saber a sorte e o paradeiro dos seus entes queridos.

As tendências são aterradoras. Estima-se, de modo conservador, que mais de um milhão de pessoas desapareceu no Iraque entre 2003 e 2013,1 e mais de 10 mil ainda estão desaparecidas em relação com o conflito dos Balcãs Ocidentais nos anos 1990 e 2000.2 Dezenas de milhares de pessoas desapareceram nos conflitos atuais ao redor do mundo, bem como em situações onde existe um alto nível de violência e partes dos territórios do Estado estão fora da lei, normalmente sob o controle de gangues e facções. O número de migrantes desaparecidos é ainda mais difícil de avaliar. A Organização Internacional para as Migrações (OIM) calcula que pelo menos 7.760 migrantes perderam as suas vidas ao redor do mundo em 2016, muitos deles não identificados. As pessoas que desaparecem continuam representando um dos efeitos mais prejudiciais das guerras passadas, situações atuais de conflitos armados ou violência, migrações e desastres naturais, afetando de modo adverso os indivíduos que desaparecem, as suas famílias e a comunidade em geral. Atualmente, parcelas de pessoas desaparecidas da atualidade se unem a outras cujas informações não foram encontradas durante anos, mesmo décadas, causando angústia e incertezas às famílias e obstaculizando as possibilidades de reconstrução do tecido social das comunidades e sociedades afetadas. O Direito Internacional, em particular o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos Direitos Humanos, contém uma quantidade significativa de normas e princípios com a finalidade de prevenir, remediar e, quando apropriado, punir o desaparecimento de pessoas como resultado de conflitos armados ou violência. O Direito Internacional reconhece o direito dos familiares das pessoas desaparecidas de saber a sorte e o paradeiro delas, o que abrange, entre outros, a obrigação correlata, segundo as normas de Direitos Humanos, das autoridades públicas em realizar uma investigação eficaz nos casos de desaparecimentos, para esclarecer a sorte e paradeiro da pessoa dada por desaparecida, e em informar e assistir as famílias consequentemente, bem como proteger os mortos e restabelecer as suas identidades. O artigo não trata do marco jurídico aplicável aos desaparecidos no Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Direitos Humanos ou das normas legais aplicáveis para a proteção dos mortos e restabelecimento das suas identidades.

Durante as duas últimas décadas, foram estabelecidos mecanismos e processos durante os conflitos armados e situações de violência, ou mesmo durante estes períodos, com a finalidade de propiciar respostas e assistência às famílias das pessoas desaparecidas. Mesmo tendo assumido distintas formas com resultados variáveis, esses mecanismos e processos foram, com frequência, úteis para garantir proteção e assistência efetivos aos desaparecidos e suas famílias nas situações pósconflito armado e pós-violência.

Baseado principalmente na experiência adquirida pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), desde 2003, no campo de pessoas desaparecidas, este artigo analisa os diferentes tipos de mecanismos que podem contribuir para lidar com a questão dos desaparecimentos, incluindo fornecer respostas sobre a sorte e o paradeiro das pessoas desaparecidas. Analisa em detalhe um mecanismo com o qual o CICV tem experiência no terreno. Argumenta que uma abordagem com objetivos humanitários que não busque os responsáveis pelos desaparecimentos, com uma gestão adequada das informações confidenciais, poderia ser um instrumento potente para buscar e coletar informações pertinentes sobre os desaparecidos em certos contextos. Isso se comprova especialmente, por exemplo, nas situações em que as autoridades relevantes são identificáveis, as instituições são fracas e os que compartilham as informações não estão inclinados a falar por medo de represálias ou processos penais.

O enfoque proposto tem a finalidade de ser complementar a outros mecanismos ou processos que existam e que sejam comprovadamente eficientes no período pós- conflito armado e violência generalizada, incluindo os que contribuam à luta contra a impunidade. Por exemplo, deve-se render homenagem às ricas história e experiência desenvolvidas na América Latina, onde as associações dos familiares conseguiram, com muitas dificuldades, ajudar a estabelecer mecanismos que visam revelar todas as informações sobre as pessoas desaparecidas e trazer perante a justiça as pessoas responsáveis por causar o desaparecimento. O desafio se encontra na identificação das condições necessárias para fazer que os mecanismos funcionem e na busca de maneiras de fortalecer todas as abordagens, aproveitandose das suas naturezas complementares. Na primeira seção do artigo, analisam-se certos requisitos preliminares que devem ser satisfeitos para garantir um tratamento adequado e eficaz de todas as questões relativas às pessoas desaparecidas em situações de pós-conflito, incluindo conflitos que não evoluíram ou situações de violência. A segunda seção descreve as diversas formas que os mecanismos podem assumir nosníveis nacionais e de coordenação, propiciando detalhes sobre os seus respectivos mandatos, capacidades e poderes. A terceira seção propões medidas que podem ser adotadas para criar incentivos para uma troca bem-sucedida de informações relevantes sobre os desaparecidos. A quarta seção explica como um mecanismo com um mandato humanitário e gestão adequada de dados confidenciais pode ser eficiente sem ser um obstáculo à justiça.

O presente artigo não tem a intenção de ser exaustivo, apesar de adotar um enfoque com base em evidências, utilizando o maior número possível de exemplos pertinentes do terreno. Dessa forma, deverá contribuir para posicionar a questão dos desaparecidos no centro da agenda humanitária, inclusive nos processos transicionais implementados depois de períodos de conflitos e violência. Deverá também propiciar elementos para ajudar a aplicar e explicar melhor o enfoque humanitário para os mecanismos que têm por objetivo o descobrimento da sorte e paradeiro das pessoas desaparecidas. Por último, o artigo focaliza nas situações pós-conflito e pós-violência, incluindo conflitos paralisados, não cobrindo outras situações que causam o desaparecimento de pessoas, como desastres naturais e migração, embora a experiência do CICV demonstra que as necessidades das pessoas desaparecidas e o sofrimento advindo dessas circunstâncias, bem como a base para a resposta na maioria dos casos, podem ser muito similares.

Leia o artigo completo no pdf em anexo abaixo.

Criação de mecanismos para esclarecer a sorte e o paradeiro das pessoas desaparecidas: uma proposta de enfoque humanitário

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