Relatório

Reforço das respostas multidisciplinares ao desaparecimento no Brasil

Balanço Humanitário 2021

O ano de 2021 foi um período de intenso trabalho do CICV no Brasil na temática das pessoas desaparecidas e seus familiares. Colaboração com autoridades para a construção de mecanismos para a busca de pessoas desaparecidas e o apoio direto às famílias por meio do Programa sobre Pessoas Desaparecidas e suas Famílias no Brasil estiveram entre ações realizadas no período. O lançamento do relatório de avaliação de necessidades dos familiares também foi um ponto forte do ano. Também foram marcantes a realização de atividades com acadêmicos e lideranças entre familiares de pessoas desaparecidas e a facilitação de oportunidades de diálogo e troca de experiências entre autoridades e famílias do Brasil (e entre elas e representantes de outros países).

Esforços foram feitos pela equipe do CICV para garantir uma atuação multidisciplinar tanto no trabalho de assessoria técnica às autoridades quanto no acompanhamento de grupos focais de familiares de pessoas desaparecidas - incluindo o enfoque em saúde mental e apoio psicossocial, forense, jurídico e especializado na temática do desaparecimento.

Os registros anuais de desaparecimento no Brasil continuam elevados. Segundo dados divulgados em 2021 no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 62.857 registros no ano de 2020, acompanhados de um número de 31.996 de pessoas localizadas. Por isso, requerem atenção especial e coordenação entre as autoridades – em nível federal, estadual e municipal.

É importante que diferentes atores, tanto da sociedade civil como autoridades e acadêmicos, se mobilizem para contribuir com uma resposta adequada a todas as necessidades das famílias de pessoas desaparecidas e, sobretudo, a seu direito a saber o que aconteceu com seu ente querido, avalia Rita Palombo, coordenadora de Proteção da Delegação para a Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai do CICV.

Brasil

No Brasil, o CICV desenvolve uma série de ações. Uma delas é a de assessorar tecnicamente e facilitar o intercâmbio de experiências internacionais tanto a órgãos públicos federais, estaduais e municipais, nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará sobre a construção de mecanismos de busca de pessoas desaparecidas. "Se trata de uma questão complexa porque é constituída de diferentes elementos profundamente ligados entre si, como uma adequada gestão da informação, uma clara atribuição de responsabilidades e do papel de cada instituição no mecanismo, o papel e o acompanhamento das famílias de pessoas desaparecidas, entre outros. Isso tem que ser feito, no Brasil, a nível municipal, estadual e federal. E tem que ser feito independentemente do tipo de desaparecimento, com a finalidade de indicar o paradeiro do ente querido aos familiares", completa Rita.



Encontro de familiares de pessoas desaparecidas em São Roque (SP). Foto: Tiago Queiroz/CICV

 

Ao nível federal, o CICV tem prestado apoio técnico e recomendações baseadas em sua abordagem humanitária e neutra aos Ministérios da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), que lideram a implementação da Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas e se revezarão na presidência do Comitê Gestor sobre o tema, que foi instalado no ano passado.

Junto ao MJSP, o CICV trabalha na implementação de um memorando de entendimento (assinado em dezembro de 2020) oferece assessoria técnica à Secretaria Nacional de Segurança Pública, que foi nomeada como autoridade central para Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas quanto à construção e mecanismos de busca, localização e identificação de pessoas, ciências forenses, gestão de dados e atenção a familiares. A equipe multidisciplinar do CICV colabora e seguirá colaborando com quatro grupos de trabalho coordenados pelo MJSP e com outro, coordenado pelo MMFDH.


O trabalho federal deve estar conectado com a realidade dos estados e por isso o Programa sobre Pessoas Desaparecidas e suas Famílias no Brasil tem um foco de ação específico em alguns estados representativos da problemática.

Em São Paulo, o CICV possui uma grande rede de interlocução junto a representantes do sistema de justiça e do poder executivo estadual e municipal. Além disso, participa de grupos de trabalho dedicados a desenvolver serviços de atenção a familiares de pessoas desaparecidas. Em 2021, o CICV pôde, por exemplo, trabalhar em conjunto com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos, a Secretaria Estadual de Saúde, a Polícia Civil, a Defensoria Pública, o Ministério Público, a Cruz Vermelha Brasileira e representantes de universidades e de outras instituições. Parte deste trabalho envolveu a apresentação de recomendações e apoio técnico, mas também a realização de atividades com famílias de pessoas desaparecidas participantes do programa de acompanhamento realizado pelo CICV.

Já no Rio de Janeiro, o CICV assinou um acordo de cooperação com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SEDSODH). Este acordo resulta de um diálogo preexistente entre as duas instituições e objetiva unir esforços para desenvolver e implementar a metodologia do Comportamento mais Seguro para Serviços Públicos Essenciais (CMS); desenvolver políticas públicas relativas ao desaparecimento de pessoas e às necessidades dos familiares, entre outras áreas.

No Ceará, o CICV contribuiu com um grupo interinstitucional nas discussões sobre coordenação de órgãos públicos estaduais para o estabelecimento de uma política estadual de busca e identificação de pessoas e atenção a familiares de pessoas desaparecidas. Além disso, realizou uma série de atividades, que incluiu uma reunião com familiares e autoridades no dia 30 de agosto, Dia Internacional das Pessoa Desaparecidas, e a oficina "O desaparecimento de um familiar: O visível não é só o desaparecimento", que reuniu a equipe da própria organização e profissionais da 12ª Delegacia do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil do estado do Ceará (PCCE).

O Programa sobre Pessoas Desaparecidas e suas Famílias trabalha em complementaridade com o Programa de Pessoas Afetadas pela Violência. Em 2021 foram desenvolvidas ações de aproximação a comunidades e redes comunitárias onde a violência tem causado consequências humanitárias importantes, entre elas o desaparecimento de pessoas. 

Apoio às Famílias

Para fortalecer ainda mais o trabalho em torno de pessoas desaparecidas, em 2021, a Delegação lançou um relatório que joga luz sobre o problema, mostrando o impacto desses desaparecimentos para quem convive mais intimamente com essa dor: às famílias de quem desapareceu.

Intitulado Ainda? Essa é a palavra que mais dói, o documento é resultado de um processo de entrevistas e sessões em grupo com famílias de pessoas desaparecidas, servidores públicos com experiência no atendimento a casos de desaparecimento e líderes e colaboradores de associações de familiares de pessoas desaparecidas. A partir dessas entrevistas, foi elencada uma série de recomendações às autoridades e à sociedade para a construção de políticas públicas capazes de atender as demandas desses públicos.

"Fizemos esse trabalho de conscientização, sensibilização, e nos pautamos pelo conhecimento empírico de escuta das famílias e dos provedores de serviço. A partir daí, nos colocamos à disposição de órgãos estratégicos para apoiar e compartilhar nossa experiência e conhecimento técnico", explica Larissa Leite, coordenadora de Proteção adjunta da Delegação Regional do CICV.

"O objetivo central desse trabalho foi entender o desaparecimento a partir do relato das famílias, pois são elas que vivenciam a experiência. A pessoa desaparecida é a primeira vítima, mas a família está aqui para falar sobre o desaparecimento e como ele impacta em suas próprias vidas, de forma muito grave e progressiva", explica Larissa Leite.

Programa de Acompanhamento

 

Enquanto trabalhava com os dados publicados no relatório Ainda? Essa é a palavra que mais dói, o CICV realizou um programa de acompanhamento a familiares de pessoas desaparecidas, em um formato de piloto.

Quando fizemos o relatório, vimos que as consequências dos desaparecimentos eram tão graves, que precisávamos ajudar a responder às necessidades daquele grupo que entrevistamos, enquanto trabalhávamos para sensibilizar autoridades e outras instituições a criar serviços de referência aos familiares de pessoas desaparecidas. No Brasil, é grande a quantidade de casos de pessoas desaparecidas e as necessidades das suas famílias são específicas e prejudicam todas as áreas da sua vida, muitas vezes levando ao adoecimento e à morte. Por isso, apoiamos diversas iniciativas voltadas a construir políticas e serviços adequados

Com um grupo estendido, os membros de 36 famílias participaram de diversas atividades, presenciais e online, entre os anos de 2019 e 2021. Coordenadas pelo CICV, essas atividades contaram com o apoio de instituições parceiras e especialistas em diversas áreas, como saúde, atenção psicossocial, assistência jurídica, comunicação, geração de renda, formação de coletivos etc. Os resultados alcançados, com o fortalecimento dos participantes e criação de laços entre eles, mostraram o quão importante é a formação de grupos de apoio. Em 2021, muitas atividades on-line foram realizadas.

"Com as atividades do programa de acompanhamento, os familiares de pessoas desaparecidas foram também estimulados a formarem uma rede de apoio entre eles, assim como em suas famílias e comunidades. Diante este contexto, familiares de pessoas desaparecidas podem se sentir sozinhos e isolados. Portanto, é importante que possam criar ou fortalecer espaços e laços de confiança e apoio para lidarem com as adversidades enfrentadas diante o desaparecimento de um ente querido", completa a coordenadora do Programa de Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Delegação, Renata Reali.

"Eu sou sozinha na minha casa e esses encontros me encheram de alegria, me encheram de paz e de felicidade", diz Francisca Ribeiro, mãe de Hugo, que está desaparecido. "O CICV se tornou a nossa segunda família. A família que nos trouxe muito mais amor, que nos abraçou e que nos fez dar o salto do primeiro grau ao segundo grau", completa.



Francisca Ribeiro, familiar de pessoa desaparecida acompanhada pelo CICV. Foto: Tiago Queiroz/CICV

O programa de acompanhamento, encerrado em dezembro de 2021, será sistematizado pelo CICV, para que a experiência possa ser oferecida para outras instituições, como uma ferramenta de trabalho. "Vamos trabalhar para que esse aprendizado possa ser compartilhado, assim como fizemos com o relatório. Queremos divulgar a experiência da atenção a um grupo de apoio mútuo entre familiares de pessoas desaparecidas", explica Larissa Leite.

Debora Alves, mãe de Kaio, que está desaparecido, chama a atenção para a importância da união e da empatia com as famílias. "Esse programa ensinou a gente a se unir. Que a gente tem que ter união para poder ir atrás do que a gente precisa, né? E que sozinho ninguém consegue fazer nada. E o carinho que pessoas que não estão na nossa realidade, acabam tendo com a gente", afirma.

Entre atividades de acolhimento — formativas e informativas—, o CICV proporcionou às famílias um livro de memórias, onde cada página foi dedicada a uma pessoa desaparecida. "Para as famílias preservar a memória é uma maneira de reconhecer o direito à busca, do direito de saber", resume a coordenadora de Proteção adjunta.

Outro exemplo de atividade realizada com as famílias foi realizada uma oficina de comunicação para mais de 40 pessoas, entre julho e setembro de 2021. Durante as atividades, os participantes foram incentivados a desenvolver, de forma autônoma, habilidades de comunicação para aperfeiçoar o uso das redes sociais, compreender armadilhas de conteúdos falsos e se preparar para lidar com a imprensa e autoridades importantes para a causa.

Foto: Victor Moriyama/CICV

Quadro sobre o Relatório "Ainda"

"Um luto que não tem fim". Foi assim que uma mãe descreve o sofrimento que sente desde o desaparecimento de seu filho, no estado de São Paulo. Outra mãe deu a seguinte declaração: "a espera é muito pior do que a morte". Duas frases doídas, que resumem bem o sofrimento de quem passa anos, às vezes décadas, sem saber o paradeiro de um ente querido. Esses e outros depoimentos tocantes podem ser encontrados no relatório Ainda? Essa é a palavra que mais dói, lançado pelo CICV em 2021. Ao contrário do luto, a dor do desaparecimento de um ente querido não é aliviada com o tempo. "Pelos depoimentos que coletamos, percebemos que a dúvida sobre o paradeiro da pessoa só fica mais pesada com o passar do tempo", relata a coordenadora adjunta.

Justamente por isso, a realidade dos familiares é o ponto fundamental para orientar as ações do CICV. Afinal, as mães e pais, companheiros, filhos, irmãos e demais parentes dessas pessoas conhecem, na prática, os desafios e caminhos dessa busca. São eles que sofrem as consequências da ausência e, logo, podem falar melhor sobre as próprias necessidades.

Para entender melhor a dimensão da dor dessas famílias, basta ler as histórias do relatório "Ainda?" Essa é a palavra que mais dói. Histórias como a relatada por um psicólogo que atendeu uma mãe que, na busca por seu filho, levava sempre uma muda de roupa dele na bolsa. Motivação? Queria que ele pudesse se vestir bem quando fosse encontrado. Muitas vezes, porém, essa mesma mulher precisava ir ao Instituto Médico Legal, para fazer a identificação de um corpo que poderia ser de seu filho.

Ao ouvir e analisar esse e outros depoimentos, o CICV propôs 15 recomendações para profissionais e instituições que trabalham com a questão do desaparecimento de pessoas.

"Nossa primeira recomendação é que exista, de fato, um investimento bastante sólido na construção de um mecanismo completo de busca. Porque um mecanismo de busca parte do fortalecimento da investigação, mas também da coordenação de muitas instituições que já têm informações que podem
ajudar a esclarecer um paradeiro", afirma Larissa Leite, que lembra da necessidade que o mecanismo tenha um canal de comunicação com as famílias. Outra recomendação fundamental está relacionada ao estabelecimento de serviços multidisciplinares de atenção às famílias.

Larissa Leite destaca que o lançamento do relatório foi uma conquista decisiva no trabalho do CICV. O documento foi enviado a servidores públicos estaduais e nacionais e houve uma grande mobilização em torno da divulgação dos resultados da pesquisa. "Fizemos eventos com a participação das famílias e fomos convidados a apresentar a publicação ao Comitê Gestor da Política Nacional de Pessoas Desaparecidas. Vimos várias pessoas se despertando para os problemas que apontamos", conclui a coordenadora.