Artigo

A voz de quem espera

"Era nesse horário, à tardezinha... Nesses dias muito frios, ele chegava congelando. Ia para o chuveiro, enquanto eu fazia um copo de Nescau quente e um pão na frigideira com óleo, pois ele não gosta de manteiga e nem de margarina. Sinto muita saudade. Como um livro que se lê e falta a última página. Hoje, tomo meu Nescau sozinha".

Palavras de M são matéria poderosa para superar a indiferença e dar rosto à realidade de muitas famílias ao redor do mundo. Se cada ser humano carrega em si a essência da própria Humanidade, a história de um desaparecimento, quando ouvida com atenção, traduz a força das vozes que buscam por seu seres amados. Esta força tem o poder de nos invadir como o cheiro de pão passado ao espraiar-se pela casa. Somos conduzidos, então, até a lembrança de um dia frio, aquecido pelo calor do afeto.

E se ao chegar em casa não pudéssemos encontrar quem mais amamos? Imagine não saber em quais portas bater e onde buscar. Ignorar o paradeiro e não ter notícias de quem você cuidou, amou e protegeu. Imagine a dor, a angústia. Imagine o estigma e a solidão. Imagine não poder sentir saudades sem sofrer...

Uma média de 203 registros de desaparecimento são computados diariamente no Brasil.

Para muitas famílias esta é uma realidade da qual não se pode fugir. A, por exemplo, aguardava o retorno de seu filho no fino equilíbrio de uma cadeira de balanço. Sempre com linha e agulha em mãos, tecia o labirinto onde imaginava estar seu filho. Para cada linha um caminho, para cada nó um lugar. Como se o ato de cerzir e coser reafirmasse a inseparabilidade daquela ligadura. Muitas foram as pessoas presenteadas com seu tricô, até que suas mãos descansaram antes do desejado encontro.

Como ele encontrará o caminho de volta, sem o novelo de sua mãe?

"Guardo sangrando no peito: a saudade;
Até aquela não vivida;
Sem saber o porquê de sua partida;
Arrancados de mim e dos meus;
Abraços, sorrisos, até mesmo o adeus." C.

A busca por um ente querido pode se prolongar no tempo. A incerteza sobre a sorte do ausente vai consumindo a vida das pessoas em uma espera que se renova a cada dia. "Acordo esperançosa e vou dormir angustiada", disse J cuja espera está tatuada no olhar. O limbo ao qual as famílias estão submetidas fragiliza os laços familiares e comunitários e o isolamento surge como uma realidade.

Os familiares de pessoas desaparecidas vivem o desafio de reorganizar suas vidas fragmentadas pelo desaparecimento, enquanto buscam por seus entes queridos. Nestas buscas, muitas vezes precisam superar a desconfiança, a culpabilização e defender a memória de seus desaparecidos. São diversas as circunstâncias nas quais pessoas desaparecem. Em muitos casos, estão elas relacionadas à violência ou outras violações de direito. "Sinto esperança quando encontro com outras mães. Estamos - não no mesmo barco - mas no mesmo mar" I.

Muitas são as embarcações a navegar este mar. Algumas mais abastadas e outras mais modestas. Há jangadas com velas em cores diversas, canoas, cargueiros e pesqueiros. Há navegantes mais afoitos, outros mais temerosos. Há quem saiba nadar e quem aprenda na travessia. Olhando a frota percebemos que todos carregam os calos da navegação. Todos trazem no peito o ritmo do farol, ansiando vislumbrar um porto seguro para um abraço de reencontro.

A luta das famílias não tem sido vã. O Brasil está trabalhando para responder a esta problemática. Uma lei sobre desaparecimento de pessoas foi sancionada em 2019 e sua implementação está sendo viabilizada através da criação de uma política nacional. Ações no nível federal e estadual estão sendo desenvolvidas para que as buscas por pessoas desaparecidas tenham caráter de urgência e para que as necessidades das famílias sejam consideradas. Ainda, serviços multidisciplinares estão ampliando seu escopo para responder às necessidades das famílias afetadas.

No entanto, a realidade do desaparecimento no Brasil segue a desafiar famílias e autoridades. Falta um registro unificado e sistematizado com dados confiáveis sobre o fenômeno. A coordenação interinstitucional também é um tema de atenção que deve ser fortalecido a fim de garantir uma ação integral e abrangente. Muitas iniciativas tem que ser consolidadas e institucionalizadas para que possam ser mantidas no tempo e padronizadas. As famílias de pessoas desaparecidas continuan lutando e buscando, muitas vezes sozinhas e com seus próprios recursos.

Autoridades, Organizações Internacionais, Sociedade Civil e você quem lê este texto pode contribuir, cada qual com seu quinhão, para mudar esta realidade. Ouvir ativamente as vozes das pessoas afetadas, reconhecer suas dores e garantir suas participações na construção de políticas públicas é um caminho para criar mecanismos de busca e identificação mais eficazes.

"Não há remédio que cure a saudade que sinto do meu filho, mas os encontros com as famílias, as trocas de carinho, as conversas sobre nossos filhos ainda me motivam me alegram e renovam a minha esperança". F.

O CICV - organização humanitária, neutra, imparcial e independente - tem apostado no encontro como a chave para estimular respostas ao desaparecimento de pessoas. Reunir as vozes dos familiares de pessoas desaparecidas vai além de um gesto de empatia. Significa incluir quem sofre a dor do desaparecimento nas soluções dos desafios que afetam suas próprias vidas.

Nos dias 28 e 29 de agosto, famílias de todo o Brasil organizaram uma I Conferência Nacional com o apoio do CICV. Mais do que um ato de esperança, este evento é um passo firme das familias na direção de fortalecer capacidades, amplificar as vozes, sedimentar caminhos e buscar respostas às dificuldades que persistem na vida de quem de quem luta para ressignificar a ausência.

30 de agosto é o Dia Internacional das Pessoas Desaparecidas. Dia de manter viva, sem distinções, a memória de cada ser querido, enquanto relembramos nossa própria humanidade. Ontem, assim como hoje e amanhã, O CICV está ao lado das famílias, acompanhando-as nesta dura vereda, até que a última voz seja ouvida, até que a última pessoa desaparecida seja encontrada.

 

Alexandre Formisano
Chefe da Delegação Regional do CICV para Argentina, Brasil, Chile, Paraguay e Uruguay
Daniel Mamede
Assessor do Programa de Pessoas Desaparecidas em Fortaleza do CICV

 

Cada peça importa quando se trata de #desaparecimento de pessoas. E a informação é um passo importante!
Já conhece o site www.desaparecimento.com.br? Nele você terá acesso a publicações, vídeos e muito mais sobre o tema.