Declaração

Sessenta anos das Convenções de Genebra e das próximas décadas

Declaração de Jakob Kellenberger, presidente do CICV, para a conferência sobre os desafios do DIH impostos pelas novas ameaças, pelos novos atores e pelos novos meios e métodos de guerra, organizado pelo Departamento Federal Suíço de Relações Exteriores, em colaboração com o CICV, Genebra, 9 e 10 de novembro de 2009.

Senhora Conselheira Federal,

Excelências,

Senhoras e Senhores,

Gostaria de agradecer ao Departamento Federal Suíço de Relações Exteriores por ter se unido ao CICV nessa iniciativa de organizar esta conferência. O CICV colaborou com o desenho do programa e o fornecimento de documentos de referência para as oficinas.
Antes de tratar dos principais temas desta Conferência, deixe-me salientar que o fato de hoje estarmos analisando os futuros desafios do DIH, de certa forma, não significa que os princípios e regras fundamentais desta área do direito internacional estejam desatualizados. A base humanitária que continua sendo fundamental para tratar de qualquer pessoa nas mãos de inimigos está expressa em inúmeras regras do DIH, independente do tipo de conflito armado. Do mesmo modo, a base da diferenciação não pode ser transgredida. O grande número de regras elaboradas sobre condução de hostilidades ainda é primordial para proteger os civis. Em suma, os princípios em vigor do Direito Humanitário devem ser preservados. Não importam as possíveis evoluções que o DIH possa sofrer no futuro, não se deve pôr em perigo ou prejudicar as proteções já previstas pelo DIH para as pessoas afetadas pelos conflitos armados.

Senhoras e Senhores,

Os conflitos armados evoluíram muito nos últimos 60 anos e as linhas se tornaram cada vez menos nítidas entre as diferentes partes de um conflito armado, bem como entre os combatentes e civis. Civis, quer sejam homens, mulheres ou crianças, são cad a vez mais as principais vítimas. O DIH se adapta constantemente a esta realidade mutante. A adoção dos dois primeiros Protocolos Adicionais das Convenções de Genebra em 1977, com regras estabelecidas sobre a conduta das hostilidades e sobre a proteção das pessoas afetadas pelo conflito armado interno, é apenas um exemplo. As regras específicas que proíbem ou regulamentam as armas como as minas antipessoal e, mais recentemente, as munições cluster são outro exemplo da adaptação do DIH à realidade.

Os traumáticos eventos de 11 de setembro e seus alcances estabeleceram um novo processo para o DIH. A polarização das relações internacionais e as consequências humanitárias da chamada " guerra global contra o terror " representam um enorme desafio. A multiplicação e a fragmentação de grupos armados é outro desafio, já que alguns desses grupos rejeitam as premissas do DIH.

O DIH atendeu a esses desafios com sua reputação intacta e reafirmou sua adequação e adaptabilidade como uma estrutura jurídica para proteger as vítimas de conflitos armados. Ao mesmo tempo, é cada vez mais evidente a necessidade de esclarecer algumas questões. Com isso, há a necessidade de encarar com seriedade o desenvolvimento do DIH em áreas específicas e em breve retomarei este ponto.

A natureza dos conflitos armados e as causas e consequências de tais conflitos continuará evoluindo e é essencial que o DIH as acompanhe também. A questão crucial é como fazê-lo. Nossas reflexões partilhadas durante esta conferência deveriam abrir caminho para explorar novas possibilidades - e limites – sobre este assunto.

No que diz respeito aos temas das quatro oficinas que serão apresentadas nesta tarde, algumas observações sobre cada um deles: em primeiro lugar, o que exatamente entendemos por " novas ameaças " ? Para os propósitos que temos hoje, o termo " novas ameaças " será utilizado para cobrir tanto as ameaças exist entes, que podem intensificar ao longo das próximas décadas, como também as recentes ameaças – em especial as que podem conduzir a situações de violência coletiva, incluindo o conflito armado. Isto pode incluir o crescimento populacional e a urbanização, a escassez de recursos naturais e as crescentes disparidades na distribuição da riqueza, os riscos ecológicos, os Estados enfraquecidos e atividades transnacionais de grupos criminosos, incluindo os que utilizam métodos terroristas.

Ao analisar as causas e os tipos de violência que se espera que ocorra no futuro e se o DIH deve ser adaptado como uma consequência disso, os participantes serão confrontados com uma série de questões desafiadoras. Quais serão as principais ameaças à paz e à segurança no mundo nas próximas décadas e que tipo de violência armada resultarão? Como os Estados, organizações internacionais, organizações humanitárias e agências de desenvolvimento podem se preparar para atender às necessidades das pessoas afetadas por futuras ameaças à paz e à segurança, em especial nas situações de violência coletiva, incluindo o conflito armado? Qual é o papel e a importância do direito internacional com relação ao DIH? E será que a importância do DIH, como um corpo de lei que lida com conflitos armados, aumenta ou diminui em função da evolução dos tipos de violência com que seremos confrontados?

O potencial de alcance dos " novos atores " é naturalmente grande, já que as ações têm repercussões a nível internacional. Embora muitos desses " novos " atores já existam há algum tempo, eles nos fazem - nos farão questionar - algumas das suposições mais tradicionais em que o sistema jurídico internacional se baseia.

Hoje nos concentraremos nos novos atores que tendem a estar cada vez mais envolvidos - direta ou indiretamente - em situações de violência coletiva, incluindo conflitos armados. O espectro destes atores ainda é muito amplo, abrangendo uma variedad e de identidades, motivações e graus de vontade e capacidade, para observar o DIH e outras normas do direito internacional. Certas organizações de grupos armados, forças armadas e de segurança privadas, corporações transnacionais, gangues urbanas, milícias e grande variedade de entidades criminosas transnacionais, incluindo grupos " terroristas " e piratas, requerem análise a este respeito.

Identificar e compreender estes atores e suas características é um pré-requisito fundamental para enfrentar melhor os desafios decorrentes de sua participação nos atuais conflitos armados. Também é importante reconhecer a complexidade da realidade para evitar cair na armadilha de categorização enganosa que não contribui para os interesses ou o aumento da proteção das pessoas afetadas nos conflitos contemporâneos.

Permitam-me lembrá-los que o DIH é a única estrutura jurídica não-vinculativa a grupos armados. O Artigo 3º Comum às Convenções de Genebra e o Protocolo Adicional II de 1977 servem para este fim, assim como um grande número de regras consuetudinárias do DIH. Também foram realizados vários processos de esclarecimento do DIH neste sentido.

No entanto, será importante analisar se as regras existentes do DIH são adequadas para lidar com novos atores não-estatais ou se é necessária mais regulação. Se for assim, as novas regras, normas e boas práticas legais deveriam ser desenvolvidas para acomodar melhor os novos atores na estrutura do direito humanitário? E, mais importante, como assegurar o cumprimento do DIH por parte de atores não-estatais em conflitos armados, os quais têm pouco incentivo legal ou prático para fazê-lo?

Passo agora para " novos meios e métodos de guerra " , que é o tema da terceira oficina. Não há dúvidas de que os novos desenvolvimentos tecnológicos terão um impacto sobre as guerras futuras. Conflitos recentes têm visto o a umento do uso de armas ou sistemas de armas controlados remotamente - incluindo os chamados " drones " - e de armas ou sistemas de armas automáticos. Existe a possibilidade de que no futuro, os sistemas de armas sejam totalmente autônomos. Em especial, os sistemas automáticos e autônomos de armas despertam certa preocupação em relação ao cumprimento do DIH. A capacidade tecnológica para programar armas capazes de distinguir combatentes de civis e objetivos militares dos bens civis está sujeita ao atual debate, assim como sua capacidade de respeitar os princípios da proporcionalidade e as precauções necessárias no ataque.

Não são apenas os tipos de armas que estão mudando, mas também os ambientes em que são usados com frequência. O debate foi motivado, em parte, pelo crescente número de operações militares realizadas em zonas urbanas densamente povoadas, muitas vezes usando explosivos emitidos por armas pesadas, que podem ter consequências humanitárias devastadoras para as populações civis de tais localidades.

Outra questão fundamental é a natureza cada vez mais assimétrica dos modernos conflitos armados. Diferenças entre os beligerantes, sobretudo em termos de capacidades tecnológicas e militares se tornaram cada vez mais acentuadas. O cumprimento das regras do DIH pode parecer benéfico para um único lado do conflito e ao mesmo tempo prejudicial aos outros. Na pior das hipóteses, uma facção militarmente fraca - perante um adversário muito mais poderoso – pode infringir as regras fundamentais do DIH em uma tentativa de nivelar o desequilíbrio. Se um lado sistematicamente quebra as regras, há um risco de que a situação se deteriore rapidamente em um "vale-tudo". Este espiral descendente poderá desafiar o propósito fundamental do DIH - de aliviar o sofrimento em tempos de guerra. Temos de explorar todas as vias para evitar que isso aconteça.

Para compor estes desafios, nos últimos anos os civis se envolveram cada vez ma is em atividades relacionadas ao combate real. Ao mesmo tempo, os combatentes nem sempre se distinguem dos civis, nem pelos uniformes, nem pelas armas. Eles se misturam com a população civil. Os civis também são usados como escudos humanos. Para aumentar a confusão, em alguns conflitos, as funções militares tradicionais foram terceirizadas por empreiteiros privados ou civis que trabalham para as forças armadas estatais ou para grupos armados organizados. De alguma maneira estas tendências estão aumentando com o decorrer dos anos. Como resultado, os civis são mais propensos a ser alvo - tanto por engano ou de forma arbitrária. Os militares também estão em maior risco: uma vez que não podem identificar corretamente seu adversário, estão vulneráveis a ataques de indivíduos que a todos pareceriam civis.

O DIH afirma que as pessoas envolvidas em combates devem fazer uma distinção básica entre os combatentes de um lado, que podem ser legitimamente atacados, e por sua vez, os civis que estão protegidos contra o ataque, a menos que por algum momento participem de hostilidades. O problema é que nem as Convenções de Genebra, nem seus Protocolos Adicionais esclarecem o que constitui a " participação direta em hostilidades " .

Em um esforço para ajudar a resolver esta situação, em junho deste ano, o CICV emitiu um importante documento orientador. Sem alterar a legislação em vigor, este documento fornece recomendações do CICV sobre como o DIH, relacionado à noção de participação direta em hostilidades, deve ser interpretado em um conflito armado contemporâneo. O objetivo destas recomendações é gozar de aplicação prática onde seja necessário, em meio a conflito armado, e proteger melhor as vítimas dos conflitos.

Mas várias questões cruciais permanecem em relação à condução das hostilidades. Por exemplo, as regras do DIH são suficientes para identificar as circunstâncias em que as forças explosivas feitas por armas pesadas podem se r utilizadas em áreas densamente povoadas? Deveria ser necessária uma norma para a verificação de alvos e seu entorno ou para a emissão de avisos para a população civil? Talvez seja necessário mais desenvolvimento jurídico, mas se for assim, como possibilitar o controle e aplicação?

Finalmente retomo a questão de se os mecanismos de implementação do DIH existentes estão adaptados aos novos e atuais desafios. Permitam-me antes reiterar um fato incontestável. Apesar da contínua evolução da natureza dos conflitos armados, a maior ameaça ou desafio para o DIH continua o mesmo. É o pouco respeito e o não-cumprimento das regras e normas por parte dos beligerantes em conflitos armados de todo o mundo.

Como disse durante a Sessão de Trabalho Ministerial organizada pela Suíça, em Nova York, em setembro, as principais razões para a falta de cumprimento das leis humanitárias são a falta de vontade política, a falta de prevenção e controle, e a falta de responsabilidade.

É claro que os mecanismos existentes, previstos nas Convenções de Genebra e do Protocolo Adicional I – a saber, o sistema de proteção dos poderes, o processo formal de inquérito e a Comissão Internacional de Investigação Humanitária - não têm sido eficazes, sobretudo, porque estão sujeitos à autorização das partes interessadas. Vários mecanismos do sistema da ONU também estão limitados pelo fato de que as decisões estão sujeitas a negociações políticas entre os governos. Embora tenha havido algum progresso no sentido de reforçar a responsabilização por violações do direito humanitário - ao menos por meio de diversos tribunais internacionais e do Tribunal Penal Internacional - a cultura predominante continua sendo a da impunidade.

Espera-se que os participantes da oficina de hoje compartilhem idéias e sugestões sobre como melhorar ou mesmo de criar novos mecanismos de cumprimento; mecanismos estes que permitiriam levar em consideração o fato de que as violações do DIH precisam ser paradas enquanto estão acontecendo e não depois que já aconteceram.

No entanto, voltamos a uma simples verdade: o principal fator por trás da falta de cumprimento é falta de vontade política tanto por parte dos Estados, como dos grupos armados não-estatais. Sem a vontade política necessária, mesmo os mais refinados mecanismos de cumprimento serão apenas " latas vazias " .

O fato é que a repetição desta mensagem em forma contínua - e certamente pelo CICV - pode explicar porquê hoje se presta tanta atenção à questão do cumprimento, pelo menos em foros como este. Claro que isto é muito positivo. Todas as genuínas iniciativas realizadas pelos Estados-Parte no sentido de reforçar o cumprimento das Convenções de Genebra - inclusive por aqueles Estados que não estão diretamente enfrontando estas questões - devem ser acolhidas com satisfação, pelo menos, como uma manifestação de vontade política positiva.

Garantir uma melhora no cumprimento no DIH é algo que hoje preocupa a todos nós, embora de formas diferentes. Uma variedade de atores, incluindo Estados e atores não-estatais, forças armadas, legisladores e organizações humanitárias, tem um papel especial a desempenhar. O CICV, por sua vez, só pode contribuir com uma parte do que deve ser um esforço internacional para alcançar este objetivo.

No sexagésimo aniversário das Convenções de Genebra, em agosto, fiz um discurso aos representantes das Altas Partes Contratantes e outros convidados, com foco em questões legais e humanitárias que o CICV considera como desafios particulares - não só hoje, mas também nos próximos anos. Também destaquei o que, e como, o CICV está pronto para contribuir em termos de orientação e aconselhamento para enfrentar esses desafios.

Destaquei algumas áreas nas quais o CICV acredita que o direito humanitá rio precisa ser esclarecido, por exemplo, relacionado com a condução das hostilidades, como mencionei antes. Há outras áreas em que o direito humanitário pode precisar ser desenvolvido, na qual há uma falta de regras ou onde as regras são muito amplas ou vagas, deixando muito para a interpretação subjetiva. Isto ocorre, sobretudo, em situações de conflito armado interno, no qual o tratamento da lei existente é, no melhor dos casos, limitado. As condições de detenção e o direito dos detidos de terem contato com o mundo exterior são algumas dessas áreas. As garantias processuais para as pessoas detidas por razões de segurança são outras. Há vários outros, incluindo o acesso às populações que precisam de assistência humanitária, o deslocamento interno da população civil e a proteção do meio ambiente.

Para enfrentar os desafios humanitários e jurídicos surgidos nessas áreas, o CICV agora está em fase final de um período de dois anos de muito estudo de pesquisa interna. Este estudo visa, em primeiro lugar, explicar em termos simples, o conjunto das referidas preocupações humanitárias resultantes de conflitos armados internos - incluindo o desafio de melhorar o cumprimento da lei por todas as partes desses conflitos. Com base no presente, seu segundo objetivo é avaliar as respostas legais previstas na legislação existente para estas preocupações humanitárias. Baseado em uma avaliação global das conclusões desta pesquisa, um processo será feito para esclarecer ou desenvolver os aspectos específicos da lei. Nos próximos meses, o CICV decidirá sobre como avançar, tanto no plano material quanto processual.

Por meio de tais orientações, esclarecimentos e propostas para o desenvolvimento, o CICV espera, por fim, fazer uma contribuição significativa para a melhora do cumprimento do DIH. Isto é, em paralelo com o trabalho diário da neutralidade e da ação humanitária independente no meio do conflito armado, falando tanto com Estado e grupos armados não-estatais, instan do-os a respeitar as regras do DIH. É onde está a urgência do cumprimento: quando negociar o acesso humanitário às pessoas feridas no outro lado de uma linha de frente, por exemplo, ou facilitar a evacuação de doentes e feridos para uma área segura.

Em conclusão, deixem-me reiterar que, independente de qualquer esclarecimento ou desenvolvimento que venham a ser necessários no futuro, cada um de nós tem uma responsabilidade e um papel a desempenhar para garantir que as Convenções de Genebra, assim como todo o corpo do Direito Internacional Humanitário, continuem resistindo ao teste do tempo. Insisto que Estados e grupos armados não-estatais que também estão limitados por suas disposições, transformem as disposições legais em realidade significativa, onde é preciso, em meio ao conflito armado, proteger melhor as vítimas de tal conflito.

Obrigado.