Declaração

É preciso dar 100 passos rumo à paz, e os primeiros deles são humanitários

Palestra da presidente do CICV, Mirjana Spoljaric, na Academia Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, Universidade de Soochow. Suzhou, China – 7 de setembro de 2023.

Ilustre presidente Chen Zhu,

Sr. Wang Rupeng, decano da Academia Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho,

Ilustres convidados, senhoras e senhores, 

Boa tarde. Ni Men Hao.

É um privilégio estar com vocês hoje e representar o CICV como parceiro da Cruz Vermelha Chinesa e cofundador da Academia Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Em nome do CICV, gostaria de agradecer por este momento de partilha, com a Academia Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, no campus da Universidade de Suzhou.

Para mim, é um prazer visitar a China pela primeira vez em meu mandato como presidente do CICV para fazer um balanço, reconhecer os compromissos multidimensionais do CICV com a China e reafirmar nosso empenho em estabelecer uma relação de longo prazo com a Cruz Vermelha Chinesa e sua Academia.

Um destaque da minha visita foi participar da cerimônia de entrega das medalhas Florence Nightingale, que homenageou sete enfermeiras chinesas por sua contribuição exemplar aos serviços de saúde e humanitários.

Também tive o prazer de inaugurar uma exposição fotográfica em Pequim para celebrar o 160.º aniversário do CICV e do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Por meio de imagens poderosas, essa exposição mostra para que existimos e por quem agimos.

Vivemos em uma época com diversos desafios globais que evidenciam o quanto nosso mundo se tornou interconectado. A geração que agora chega à maioridade tem uma capacidade sem precedentes de se conectar, se comunicar e trabalhar em conjunto, independentemente das fronteiras. Além disso, a marca material dessa geração vai influenciar muito o rumo do desafio climático que todos nós enfrentamos.

As informações nunca viajaram tão rápido, e a inteligência artificial (IA) avança a um ritmo exponencial. No entanto, tensões palpáveis moldam as relações entre Estados que, embora continuem interdependentes, percebem obstáculos ou ameaças a importantes interesses próprios.

Os países sempre cooperaram e competiram, buscando defender seus interesses e conquistar influência. Historicamente, Estados do mundo inteiro projetaram o poder militar em nome da paz: para manter um status quo ou para dissuadir seus rivais.

Mas a história que contamos a nós mesmos também é importante. Afirmar que a interdependência aumenta a prosperidade ou que a competição leva a conflitos depende tanto dos acontecimentos que nos cercam quanto de como eles são explicados e percebidos pelos líderes mundiais e pela imprensa. Uma perspectiva narrativa pode se tornar uma profecia autorrealizável que só será reconhecida como o prenúncio da guerra quando já for tarde demais.

Ao observar o mundo, vejo mais de 100 conflitos armados em todo o planeta: nenhum deles era inevitável. Criar condições para a paz é uma das responsabilidades mais importantes dos Estados. Por ser uma organização encarregada de proteger e prestar assistência às vítimas de conflitos armados, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha também tem a responsabilidade de defender a paz numa época em que a perspectiva de guerra aparece no discurso público com uma casualidade e uma frequência inquietantes.

O CICV conhece a guerra. Milhares de colegas meus no terreno sabem o que a violência armada faz à humanidade. Veem todos os dias seu terrível impacto para combatentes e civis. Eles ajudam pessoas que perderam a família ou o lar. Tratam ferimentos horríveis. Lutam contra a tortura e o estupro. Veem o que a guerra faz com as crianças e a infância. Veem, em todo o mundo, essa violência ser infligida por atores estatais e não estatais, por munições guiadas por GPS e por bombas caseiras.

Os delegados do CICV costumam trabalhar sabendo que o fim da guerra – seja por uma vitória indiscutível ou pela paz negociada – não chegará tão cedo. A cada novo conflito armado que enfrentamos, sabemos que são altas as chances de que ele se arraste tempo suficiente para afetar uma geração ou mais, dificultando as possibilidades de desenvolvimento e drenando recursos.

Para nós, o conflito armado não é algo periódico ou que acontece uma vez na vida. Em 160 anos, a guerra nunca deu ao CICV uma trégua que durasse o bastante para que esquecêssemos seus horrores. Portanto, não deve ser surpresa para ninguém que o CICV despreza a guerra e todos os seus males nem que eu seja obrigada a falar devido à quantidade inconcebível de conflitos armados em andamento no mundo.

O princípio da humanidade, um dos sete princípios que orientam as atividades do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, nos instrui a incentivar a compreensão mútua, a amizade, a cooperação e a paz duradoura entre todos os povos.

Hoje, gostaria de destacar os papéis que o CICV e o Direito Internacional Humanitário (DIH) podem desempenhar para a paz. Não darei opiniões sobre conflitos específicos nem pretendo sugerir que o CICV tenha alguma ingerência em determinar como os conflitos devem ser resolvidos. Nossa neutralidade – o princípio em que nos baseamos para poder alcançar todas as pessoas que precisam de proteção, sem importar em que mãos estejam – deve ser preservada sempre.

Mas a neutralidade e a imparcialidade do DIH são grandes trunfos.

Com isso em mente, gostaria de destacar como o CICV e o DIH podem contribuir para alcançar a paz. E peço que os Estados e grupos armados não estatais recorram a esses meios como parte de seus esforços para acabar com os conflitos armados em andamento e evitar conflitos futuros.

Em primeiro lugar, o CICV desempenha um papel de intermediário neutro.

Manter o diálogo entre rivais é fundamental por vários motivos: moderar, evitar erros de cálculo e – o mais importante – garantir que, em caso de conflito armado, haja maneiras de minimizar seu custo e restaurar a paz. O CICV ajuda a abrir canais de comunicação e a mantê-los abertos para que as partes possam dar os primeiros passos para preservar a paz se ela estiver ameaçada ou restaurá-la caso o conflito já tenha eclodido.

Nisso, a neutralidade do CICV é fundamental. Por causa dela, todos os lados confiam em que temos um papel puramente humanitário. Estados e grupos armados que nos conhecem têm contado com nossos bons ofícios para viabilizar diversas iniciativas: já procuraram o CICV para que seus líderes tenham passagem segura para participar de negociações de paz; para que pessoas detidas consigam voltar para casa; para ajudar familiares separados por linhas de frente a se reencontrarem; para escoltar missões de desminagem em zonas de combate e possibilitar que façam seu trabalho; para transmitir mensagens a fim de organizar um cessar-fogo, libertações simultâneas de pessoas detidas e evacuações de áreas disputadas ou sitiadas; e para compartilhar informações sobre pessoas desaparecidas.

No entanto, nosso papel de intermediário neutro vai além da soma dessas tarefas específicas. Qualquer tipo de diálogo através de um intermediário imparcial e independente ajuda a plantar sementes de confiança quando as partes não podem ou não estão dispostas a conversar diretamente. A presença do CICV pode ajudar a evitar o colapso total da comunicação porque estimula e facilita o diálogo sobre questões puramente humanitárias. É como um negociador nos disse recentemente: é preciso dar 100 passos no caminho para a paz, e os primeiros deles são humanitários.

Em segundo lugar, o respeito pelo Direito Internacional Humanitário fortalece a paz e vice-versa.

É fácil ver o DIH isoladamente, apenas como um conjunto de normas sobre como conduzir a guerra. Ou pior, há quem possa, erroneamente, considerar que o DIH legitima os conflitos armados ou serve de desculpa para o uso da força.

Mas é importante lembrar que o DIH é apenas uma pequena parte de uma enorme arquitetura jurídica internacional centrada na paz. A paz sempre foi o objetivo primordial dos Estados que criaram as normas da guerra. Quando adotaram o Primeiro Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 1949, os Estados proclamaram "seu ardente desejo de ver reinar a paz entre os povos".

Quando se empenharam em regulamentar armas convencionais, declararam que tinham como objetivo "o fim da corrida armamentista e o fortalecimento da confiança entre os Estados, e, portanto, a realização da aspiração de todos os povos de viver em paz".

Não há contradição entre aplicar restrições humanitárias à guerra e trabalhar seriamente pela paz.

Na verdade, a aplicação fiel do direito dos conflitos armados pode fortalecer as iniciativas de paz. O respeito pelo DIH durante conflitos armados pode contribuir para a transição para a paz porque remove pelo menos alguns dos obstáculos à pacificação: menos pessoas deslocadas, refugiadas e lares destruídos implicam menos esforço para negociar o retorno ou reassentamento; mais respeito pelas proteções jurídicas em situações de detenção implica mais clareza e simplicidade para determinar quem libertar e quando; a resolução de casos de desaparecimento e a reunificação das famílias aliviam a angústia e o ressentimento coletivos, que podem ser um obstáculo inamovível à paz; menos crimes de guerra implicam menos investigações penais e discussões sobre justiça e responsabilidade depois do conflito; e, como em todos os relacionamentos, menos crueldade no conflito implica menos ódio como um obstáculo para resolvê-lo.

O DIH pode facilitar o retorno à paz por reduzir o custo material da guerra. Pode possibilitar que instituições civis importantes para o comércio nacional e internacional continuem operando. E, além de salvar vidas, a proteção de infraestruturas essenciais e serviços básicos pode ajudar a preservar certo grau de segurança econômica para a população e facilitar muito a retomada da vida normal depois do conflito.

O DIH também traz oportunidades para criar confiança entre adversários: por exemplo, mais diálogos podem surgir a partir a colaboração entre ambos os lados de linhas de frente para dar conta das pessoas desaparecidas, separadas ou mortas e reunificar famílias.

Além disso, o DIH contém disposições específicas para possibilitar negociações de paz quando as partes assim decidirem. Embora seja um conjunto de normas que rege a conduta na guerra, o DIH também indica o caminho para sair da guerra com fundamentos jurídicos para negociar "acordos especiais" entre as partes, tais como cessar-fogo, libertação de pessoas detidas, acordos de anistia e acordos de paz. E, de forma mais ampla, fornece uma estrutura sancionada internacionalmente em que dois lados em conflito podem se inter-relacionar simplesmente como "partes", sem interferir em suas opiniões sobre quem é culpado pelo conflito nem no estatuto jurídico e na legitimidade do inimigo.

Peço também que todas as partes interessadas continuem trabalhando para esclarecer e aprimorar o DIH, não apenas pela contribuição para esse conjunto de normas, mas porque esses esforços nos lembram do que está em jogo. Consultas entre Estados, declarações políticas e novas convenções chamam nossa atenção para o potencial custo humano da guerra e apelam para nosso desejo coletivo de evitar esse dano. O diálogo multilateral sobre o DIH – seja no âmbito do desarmamento ou no contexto de nossa própria conferência internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho – gera confiança e um senso de propósito comum.

Sempre que reafirmamos as exigências do direito dos conflitos armados, reafirmamos também nossa humanidade comum. Considerar que indivíduos e comunidades têm o mesmo valor é fundamental para a paz. Espero que o conjunto de normas que o CICV deve proteger contribua de alguma forma para esse propósito maior, isso é o que me motiva.

Por último, em terceiro lugar, peço que todos os Estados invistam na paz.

A perspectiva que compartilho com vocês hoje não é a de uma especialista em resolução de conflitos. No entanto, represento milhares de colegas dedicados com um profundo e incomparável conhecimento sobre o custo humano da guerra. A experiência coletiva deles sempre conta a mesma história de devastação e perda. O DIH e a ação humanitária baseada em princípios podem salvar vidas e evitar algumas das piores consequências dos conflitos armados, isso é fato. Mas eles não podem mudar a natureza da guerra nem o ataque à nossa humanidade comum.

Tudo o que é necessário para que a catástrofe do conflito armado ocorra é a crença de uma das partes de que não há melhor caminho a seguir.

Agora é hora de investir na paz. Considerar alternativas. Criar opções. Simplesmente reconhecer que o envolvimento em qualquer conflito armado – mesmo que seja considerado justificado ou necessário – terá um terrível custo humano.

O CICV vai desempenhar um papel modesto, estritamente neutro. Mas que pode ser fundamental. Todos nós temos que fazer nossa parte.

Obrigada.