Declaração

Participação das mulheres na paz e na segurança internacionais: da teoria à prática

Discurso proferido por Mirjana Spoljaric, presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Debate Aberto do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre Mulheres, Paz e Segurança. 25 de outubro de 2023.

Senhor Presidente, Excelências,

Agradeço à República Federativa do Brasil por convocar este importante debate. Os atuais acontecimentos no Oriente Médio e em outros lugares são uma lembrança chocante da rapidez com que as condições humanitárias podem se deteriorar. A situação desesperada a que assistimos hoje acontece sob a nossa vigilância coletiva. O alívio deve chegar rapidamente para toda a população, sem importar onde estejam: é urgente que as partes em conflito mantenham um mínimo de humanidade, mesmo durante o pior da guerra. 

Todas as partes em conflito devem - em qualquer circunstância - fazer todo o possível para garantir que a população civil seja protegida e que o Direito Internacional Humanitário seja estritamente respeitado, em particular na condução das hostilidades e na prestação de ajuda humanitária.

O pleno cumprimento do Direito Internacional Humanitário também exige que diversas mulheres, homens, meninas e meninos recebem igual proteção, sejam eles civis, combatentes, feridos ou prisioneiros de guerra.

Nos conflitos a nível mundial, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) - e as Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho - recordam consistentemente às partes as normas da guerra. O Direito é claro:

- Proteger toda a população civil e infraestruturas civis.
- Não recorrer a ataques indiscriminados ou desproporcionais.
- Não fazer reféns.
- Tratar as pessoas detidas e prisioneiras de guerra com humanidade.
- Permitir que organizações humanitárias imparciais, como o CICV, trabalhem sem impedimentos.

Como organização cujo mandato é desempenhar um papel de intermediário neutro, o CICV trabalha regularmente com as partes para facilitar acordo entre elas, de modo que:

- os civis possam cruzar as linhas de frente com segurança;
- as pessoas privadas de liberdade possam ser reconhecidas e libertadas;
- as famílias separadas pelo conflito armado sejam reconectadas.

Refletindo sobre o meu primeiro ano como presidente do CICV, tenho visto regularmente como as mulheres e as meninas são seriamente afetadas pelos conflitos. No entanto, os danos que sofrem são muitas vezes considerados marginais: insuficientemente compreendidos ou discutidos. Muitas violações contra as mulheres não são documentadas e continuam sendo consideradas um efeito secundário inevitável da guerra.

É a realidade destas mulheres que deve ser encarada com urgência:

- Mulheres mortas ou feridas devido aos efeitos reverberantes das hostilidades nos serviços de saúde;
- Mulheres que sofreram e sobreviveram à violência sexual e aquelas que não sobreviveram;
- Mulheres desaparecidas e cujas famílias buscam notícias com urgência;
- Mulheres combatentes feridas e detidas;
- Mulheres recrutadas por grupos armados em funções não combatentes.

No início deste ano, dirigi-me ao Conselho de Segurança para discutir a perspectiva do CICV sobre os impactos de gênero dos conflitos armados. Desejo promover estas mensagens hoje e delinear três áreas para mudança.

Primeiro, prevenir e enfrentar os danos causados pela violência sexual.

A violência sexual está claramente proibida pelo Direito Internacional Humanitário. E o respeito pelo Direito Internacional Humanitário é um ingrediente para alcançar uma paz duradoura.

Há um reconhecimento crescente por parte dos Estados e das forças armadas de que qualquer processo de paz duradouro deve encarar a violência sexual cometida durante os conflitos e dar prioridade às necessidades de todos os sobreviventes. A responsabilização deve ser assegurada de modo a ajudar a reduzir padrões repetidos de violência. No entanto, a violência sexual continua ocorrendo com frequência e impunidade.

Os Estados devem, portanto, adaptar as suas legislações nacionais para:

- garantir que a violência sexual seja sempre designada como crime de guerra;
- proporcionar medidas especiais de proteção às vítimas e sobreviventes e garantir o respeito pela sua privacidade.

Estas leis devem ser conhecidas, respeitadas e aplicadas pelas autoridades relevantes. E os Estados devem aumentar os seus esforços para promover o comedimento dentro das suas forças armadas e daqueles que apoiam.

Em segundo lugar, a aplicação fiel do Direito Internacional Humanitário exige uma compreensão dos danos de baseados em gênero causados pelos conflitos armados.

As mulheres e as meninas são afetadas de forma diferente pela condução das operações militares, por exemplo:

- Na sua capacidade de fugir, uma vez que são mais propensas a cuidar de crianças, pessoas doentes ou idosas e podem precisar de atenção especial.
- No seu acesso a cuidados médicos, pois é provável que tenham menos recursos financeiros para lidar com lesões ou ter acesso a serviços de saúde especializados, sobretudo durante a gravidez ou o parto.

O CICV tem trabalhado com especialistas jurídicos e militares para compreender esses impactos, de modo que os Estados possam cumprir melhor a sua obrigação, nos termos do Direito Internacional Humanitário, de não discriminar e de reduzir os danos civis. Os Estados podem corrigir as disparidades de gênero nos dados operacionais relacionados com a demografia civil, os seus padrões de vida, as relações de poder e os riscos enfrentados.

A participação de organizações locais de mulheres que conhecem as suas comunidades neste aspecto é fundamental.

Terceiro, a plena participação das mulheres é um caminho crucial para a paz.

O CICV vê todos os dias que quando as mulheres que controlam ativos são capazes de participar de forma igual e significativa nas suas economias e sociedades, isso produz benefícios para a resiliência de toda a comunidade e melhora a perspectiva de paz.

O cumprimento do Direito Internacional Humanitário e a promoção de ações humanitárias baseadas em princípios são contribuições importantes para proteger a vida e a dignidade das mulheres, preservar os seus ativos e as infraestruturas essenciais das quais dependem, e proteger a coesão e a confiança nas suas sociedades.

Algumas questões humanitárias primordiais, vividas principalmente pelas mulheres, mas que afetam sociedades inteiras, não são atualmente tratadas de forma adequada. Por exemplo, a questão das pessoas desaparecidas e de trazer um desfecho para familiares é um dos muitos passos para a confiança, a reconciliação e a estabilidade.

Conversei com mulheres que foram as negociadoras da linha de frente na busca dos seus familiares desaparecidos. Estas mulheres são ativistas e líderes corajosas. O conhecimento e o papel delas na influência e na mobilização das suas autoridades devem ser reconhecidos e respeitados nas negociações de paz.

 Sr. Presidente,

Existem cem passos para a paz e os primeiros são sempre humanitários. Sem a contribuição direta das mulheres, sem o reconhecimento do impacto de gênero dos conflitos armados sobre as mulheres e sem o reconhecimento do papel das mulheres em todos os aspectos das suas sociedades, as respostas de paz serão insuficientes e, portanto, não terão a perspectiva de uma verdadeira segurança.

Obrigada.