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Acesso Mais Seguro no Brasil: mulheres na liderança

Liliane Maria dos Santos, 53 anos, é doutora em Educação, mestre em Serviço Social e trabalha na Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Porto Alegre, onde também é uma das responsáveis pela implementação da metodologia Acesso Mais Seguro (AMS). Ela conta um pouco de sua trajetória, compartilha seus ideais e avalia os efeitos do AMS nas equipes a seguir:

O AMS chegou em Porto Alegre em 2016. Desde então, 3.424 trabalhadores (83,52%) foram treinados. Atualmente, equipes da educação e assistência social também estão sendo treinadas.

Ela conta que ainda vê desafios de reafirmar e romper com uma construção social do papel da mulher na sociedade brasileira. Liliane lembra que os Serviços Públicos Essenciais são predominantemente executados por mulheres, "o que já é uma quebra de paradigma". Na SMS, a Atenção Primária foi dividida em 8 gerências distritais. As 8 gerentes são mulheres, cada uma responsável, em média, por serviços que atendem uma população de 160 mil habitantes em seus territórios.

Liliane elogia o AMS, ao incidir na organização e nos processos de trabalho dos funcionários envolvidos. "É uma ferramenta que, para as unidades da Atenção Primária, contribui no processo da redução da exposição ao risco de violência. A partir da metodologia, as unidades têm autonomia na decisão, o que produz nos trabalhadores uma outra forma de se relacionar com essa questão".

Conte um pouco da sua trajetória pessoal e profissional.

Gosto de ir atrás dos meus ideais, daquilo que acredito. Quando cursava o ensino médio, fiz um curso de eletrotécnica, contrariando a tendência na sociedade, um curso majoritariamente masculino. À época, apenas duas mulheres participaram desse curso.
Ingressei na Prefeitura Municipal de Porto Alegre em 1996 e desde 2001 atuo na Secretaria Municipal de Saúde. Por 5 anos, atuei em uma Gerencia Distrital como assessora e desde 2014 estou na Coordenação da Atenção Primária. Ao longo deste período fiz Mestrado e Doutorado com temas emergentes do meu trabalho.
Como filosofia de vida, tento sempre promover a desconstrução daquilo que está colocado na nossa sociedade como norma, daquilo que é colocado como verdade, busco sempre problematizar.

Como você vê o fato de ser mulher na função que executa?

O fato de ser mulher ainda me traz algumas dificuldades, mas também desafios no âmbito do trabalho. No geral, ainda percebo uma necessidade de um caminhar na reafirmação da mulher em locais que ainda são predominantemente ocupados por homens na sociedade brasileira. Nos espaços públicos, nos serviços públicos essenciais como saúde, educação e assistência social, ainda que há uma predominância de mulheres trabalhadoras, os cargos de direção são majoritariamente masculinos.

Há um número expressivo de mulheres nos serviços públicos essenciais. Como você vê isso?

Os serviços públicos essenciais são predominantemente executados por mulheres, o que já é uma quebra de paradigma. Um fato a se ressaltar é que na Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, a Atenção Primária foi dividida em oito gerências distritais. As oito gerentes são mulheres, cada uma responsável, em média, por serviços a uma população de 160 mil habitantes em seus territórios. Quem comanda são as mulheres.
Eu acho que termos oito mulheres em cargos de gerência é uma linha fora da curva do que é preconizado e acho que a gente começa a desconstruir essa questão mais cultural que existe nesses lugares de gestão e de poder.

O que você diria para profissionais mulheres dos serviços públicos essenciais que enfrentam situações de violência armada em suas rotinas de trabalho?

Eu acredito que o Acesso Mais Seguro é uma metodologia que trabalha no coletivo e ela se faz com o coletivo. Eu diria não só para as mulheres, para todo mundo: é no coletivo que a gente consegue se organizar para dar respostas e para reinventar uma outra forma de relação, outra forma de trabalho. É fortalecendo esse processo horizontal de construção coletiva, incluindo a questão de gênero, que vamos desconstruir as verdades que são construídas em relação ao lugar da mulher e do homem na sociedade.

Qual sua avaliação do AMS a partir da experiência de Porto Alegre?

O Acesso Mais Seguro é uma ferramenta que nos ajuda a tratar a questão da violência e como a equipe deve se organizar e ter agilidade para evitar riscos, o que contribui no processo da redução da exposição à essa violência. Outro elemento da metodologia é a comunicação, tanto interna como externa, que é um nó e é fundamental no processo.
O AMS também incide na organização do trabalho e nos processos. A metodologia acabou induzindo e provocando uma aproximação entre vários níveis de atenção à saúde: começamos com o AMS na Atenção Primária, nas equipes do Programa de Atenção domiciliar e hoje introduzimos também a metodologia do AMS para os trabalhadores nos serviços especializados como os Centros de Atenção Psicossocial, Equipe de Saúde Mental, Equipe Especializada em Saúde da Criança e Adolescente e a Rede de Urgência e Emergência (pronto atendimento e o SAMU).

Alguma consideração a mais sobre a experiência?

O AMS trabalha em uma perspectiva horizontal. Antes do AMS, quando acontecia uma situação de violência no território, era preciso ligar para a gerência, que por sua vez ligava para o nível central, para a Coordenação da Atenção Primária, para assim definir como proceder, por exemplo, fechar ou não a unidade. Trabalhávamos com a questão da violência no território de uma forma vertical, o que gerava e provocava uma tensão nos trabalhadores, pois a demora na decisão os expunha ao risco. Hoje, a partir da implementação do AMS, as unidades têm autonomia na decisão.
Em resumo, a partir da perspectiva da metodologia, de autonomia e corresponsabilidade, o AMS produz nos trabalhadores uma outra forma de se relacionar com a questão da violência.

Na prática, o que mudou antes e depois do AMS?

A metodologia potencializa a corresponsabilidade, o trabalho em equipe e uma forma de participação mais horizontal. Eu acredito no trabalho coletivo. Por isso afirmei no encontro da rede: "A vida habita muitas situações de trabalho, e são as trocas de experiências que podem ativar outras aberturas nas práticas de si e dos outros".

Outras melhorias detectadas para os trabalhadores treinados?

Eu acho que é como um móvel na casa da gente. Se eu sempre almoço e sento em uma mesma cadeira, eu tenho uma perspectiva no meu olhar. Eu preciso, muitas vezes, me desacomodar, me colocar em outro lugar, para me dar conta de outras perspectivas e outras formas de olhar e produzir no processo do trabalho.
Isso melhorou a relação do trabalhador com os usuários, pois paramos e problematizamos os processos de trabalho e analisamos como nos implicamos nesse processo. Então vemos mudanças de todo tipo em uma unidade de saúde, como a organização de trabalho da equipe até a disposições dos móveis, por exemplo: como as mesas dos consultórios devem estar dispostas, como o balcão da recepção deve ser posicionado, entre outras questões.

Você indicaria a metodologia do AMS?

A metodologia do Acesso Mais Seguro me afetou e me afeta muito, positivamente. Essa metodologia tem nos viabilizado continuar trabalhando com as equipes dessa forma, no coletivo, que muitas vezes vai na contramão do que a gente está vivendo hoje em termos de conjuntura do município, do Estado, do Brasil. Acho que a gente tem um desafio grande por aí. É um momento de parar para pensar: o que dentro da minha possibilidade, da minha governabilidade, é possível, junto com a minha equipe, de forma que o meu trabalho seja prazeroso, que eu evite algumas situações de me expor?

*Foto: M.Cruppe/CICV