Artigo

Afeganistão: diário do terreno

Atualmente estou no Afeganistão, reunindo-me com pessoas que nos podem auxiliar a ajudar este lindo país destroçado pela guerra. Todos os dias, compartilharei algumas das minhas impressões, tanto aqui quanto pelo Twitter: @PMaurerICRC


Dia 1 – Confusão, contraste e resiliência

O Afeganistão é um país fascinante, cheio de contrastes e contradições; e ainda assim, com uma impressionante consistência nessa confusão. Quando fui eleito presidente do CICV, em 2012, o Afeganistão foi o primeiro país que visitei. Chegar a um país devastado pela guerra, onde você vê Kalashnikovs em cada esquina, onde os sequestros são um plano de negócio, foi uma boa introdução ao ambiente de trabalho do CICV.

Chegar a um país onde as pessoas sofreram a guerra durante décadas, onde as crianças, os adolescentes e os jovens nunca vivenciaram a paz, é uma boa introdução ao sofrimento que a guerra cria.

A resiliência da população em meio ao sofrimento pode ser a capacidade humana mais impressionante que testemunhei. Fui mais uma vez lembrado disso quando conheci Saber hoje. Ele perdeu as pernas em um acidente com minas terrestres quando tinha apenas três anos de idade. O pai dele morreu quando ele era pequeno e, então, ele se tornou refugiado no Paquistão. Contra todas as probabilidades, o menino em cadeira de rodas aprendeu a ler e a escrever e, finalmente, entrou para os times nacionais de basquete e de halterofilismo do Afeganistão.

Mas Saber tinha mais planos, mais sonhos. Durante uma viagem à Europa para uma competição esportiva, ele desertou na Suécia, com a intenção de se instalar lá e construir uma casa. Mas a realidade foi muito mais dura do que ele poderia ter imaginado e, depois de um longo mês de um pesadelo burocrático, Saber voltou para o Afeganistão. A família dele agora deve milhares de euros, mas Saber não perdeu a esperança de ter uma vida melhor.

Admiro a resiliência de Saber. Admiro a resiliência e a esperança de todos que sofreram durante a guerra.

 


Dia 2 - Medo e desespero, enquanto a paz continua um conceito abstrato

Para muitas pessoas no Afeganistão, a paz é somente um conceito abstrato, não uma experiência real.

Hoje viajei para Jalalabad, na distante região leste do Afeganistão. Me reuni com um grupo de deslocados que me contaram sobre o medo, a insegurança e o desespero que eles vêm sentindo há tanto tempo.

Esses homens, que querem permanecer anônimos, não têm uma casa estável com as suas famílias há décadas. Alguns tiverem de se deslocar várias vezes, perdendo tudo o que tinham. Depois da invasão soviética em 1979, abandonaram as suas casas, mas regressaram, unidos com os seus vizinhos na raiva contra os inimigos estrangeiros. Fugiram de novo, da violência, dos combates, do medo constante dos sequestros. Alguns se tornaram refugiados no Paquistão, outros ficaram na região onde moravam, mas não nas suas cidades. Mais de trinta anos depois, eles ainda não têm uma casa, ainda vivem com medo e dependem do que as famílias que os acolhem ou o CICV podem oferecer.

Nós, no CICV, fazemos o que podemos para ajudá-los, com assistência alimentar, programas de trabalho e outros meios. Mas não temos como terminar com o medo ou o desespero que sentem ao ver o seu próprio povo lutar entre si. E não podemos lhes devolver as casas que deixaram há tanto tempo. Somente a paz poderá.

 


 

Um paciente treina andar com as duas novas pernas no centro de reabilitação física do CICV em Mazar-i-Sharif, norte do país. CC BY-NC-ND / CICV / A. Quilty

Dia 3 – Novas pernas, nova vida

Imagine que você perdeu uma perda. Não consegue caminhar. Provavelmente perde o seu emprego e, com isso, o dinheiro para sustentar a sua família. Você não pode sair e fica isolado.

Acidentes e amputações acontecem em todos os lugares do mundo. Mas em países em guerra, especialmente onde foram empregadas minas terrestres, civis inocentes – muitas vezes crianças que brincam – têm muito mais probabilidades de perder um braço, uma perna, as duas pernas. No Afeganistão, a quantidade de pessoas com deficiência dobrou nas últimas décadas.

Hoje, visitei o centro ortopédico do CICV em Mazar-i-Sharif. O centro trata até 15 mil pacientes anualmente, colocando próteses e ensinando os amputados a caminhar de novo. Mas o trabalho não termina aí. Uma nova perna significa, com frequência, uma nova vida. Oferecemos educação, capacitação profissional, programas de emprego e microcrédito, para que os pacientes possam abrir pequenos negócios.

Desse modo, uma prótese é o primeiro passo para uma nova vida, com um emprego, uma renda, um lugar na sociedade. Sabemos que isso funciona. Dos funcionários do centro, 85% são antigos pacientes, que agora ajudam os novos a criar uma nova vida para si.


 

Dia 4 – Rostros com História e humanidade

Ouvindo os anciãos de um povoado no norte do Afeganistão. A guerra traz dificuldades diárias para eles. Pouca segurança, poucos empregos. CC BY-NC-ND / CICV

Há muitas formas de estudar a História. Assim aprendi quando estava na universidade, e me lembrei disso hoje em uma região rural no norte do Afeganistão.

Uma das formas de estudar é observar os rostros das pessoas. Os semblantes dos anciãos que conheci hoje ensinam sobre a História. Nos olhos deles, você pode ver a dor do sofrimento; nas cicatrizes, vê as agruras da natureza; nas rugas, a experiência da idade avançada.

Eles me contaram como que, no povoado em que vivem – uns poucos casebres de barro espalhados pelas montanhas de um verde escuro – cada família decide junta qual dos homens vai embora para buscar trabalho no exterior. Praticamente não há empregos na região. Partir torna-se, assim, a única opção. Me disseram que a maioria vai aos países vizinhos para trabalhar como diaristas e economizar dinheiro para alimentar as suas famílias.

Quando perguntei se algum deles havia ido à Europa para encontrar trabalho, eles riram. "A Europa é para gente rica", disseram. Gostei de vê-los rindo. Mesmo havendo um indício de desespero, os sorrisos mostraram outro lado da História: humanidade.


Últimas considerações

Voltei do Afeganistão esta noite. Nesses poucos dias que passei lá, me encontrei com diversas pessoas na capital, em cidades nas províncias e em pequenos povoados. Me reuni com o presidente, com autoridades locais e representantes da oposição armada, mas os encontros mais memoráveis foram os que tive com a população.

Todas as pessoas que vi esta semana me contaram como elas e as suas famílias sofrem com a guerra. Seja porque perderam um ente querido, viram a sua casa ser destruída, tiveram de fugir do seu povoado por causa dos combates, não conseguem tratamento médico quando precisam ou não encontram trabalho em uma economia em dificuldades.

O CICV trabalha para ajudar as pessoas em todo o Afeganistão: retornando o corpo de parentes mortos às famílias, oferecendo abrigo, alimento e água para as comunidades e pessoas deslocadas e trabalhando com hospitais, evacuações médicas e centros de reabilitação física.

Continuaremos o nosso trabalho e continuaremos incrementando as nossas operações quando possível, porque as necessidades da população estão aumentando. Contradiz a lógica o fato de que quando há um aumento de vítimas no país, a atenção do resto do mundo diminui.

O CICV não vai ignorar o sofrimento da população afegã.


Sarzanga (8) from Ghazni province was injured by a rocket. Now she’s undergoing treatment at the ICRC’s physical rehabilitation centre in Kabul.

Sarzanga (8), da província de Ghazni, foi ferida por um foguete. Ela agora segue um tratamento no centro de reabilitação física do CICV em Cabul. Andrew Quilty para o CICV.