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Brasil: Maior participação da mulher melhora resposta humanitária

A brasileira Graziella Leite Piccoli está no CICV há mais de vinte anos. Uzbequistão, Iraque, Afeganistão, Uganda, Croácia, Guatemala, México, Peru, Filipinas e hoje é nossa Chefe Adjunta da Delegação Regional em Bangkok, Tailândia. Como parte da comemoração do Dia Internacional da Mulher, Graziella falou sobre a situação de mulheres que vivem em países onde existe conflito armado e da contribuição das mulheres dentro do "mundo" humanitário.

É sempre importante trabalhar com todas as vítimas, mas por que é tão importante trabalhar com mulheres em áreas de conflito?

Há muitos anos que o CICV tem uma atenção especial com as necessidades específicas das mulheres em situações de conflito armado e outras situações de violência. Em 1990, foi desenvolvido o estudo Mulheres em Guerra para entender melhor essa problemática.

Há um nível de fragilidade das mulheres em situações de conflito, que torna-se mais agudo, onde e quando os serviços básicos não funcionam. Imagine a situação de mulheres grávidas, as que estão amamentando, as que cuidam de crianças que têm problemas de saúde. Como acudir aos serviços de saúde? Além disso, muitas vezes elas são o único ganha-pão que ficou no lar, porque o marido foi preso, foi morto ou uniu-se a algum dos grupos combatentes. E, ao sair para trabalhar ou cultivar a terra, outro risco as espera, pois elas se tornam mais vulneráveis a encontrar campos minados ou contaminados por resíduos explosivos de guerra.

Outra questão e uma das mais graves é que as mulheres estão mais expostas a ameaças como a violência sexual.

São mais de vinte anos de trabalho no CICV. Que mudanças você vê em relação à situação das mulheres em zonas de conflito nesse período?

Nesses vinte e poucos anos, eu vi várias mudanças que permitem hoje em dia responder de forma mais completa e adequada aos diversos níveis de vulnerabilidade. Uma é que nesse mundo digital, em que as informações chegam quase instantaneamente,é possível hoje saber com rapidez quantas mulheres estão grávidas, quantas estão amamentando, quantas estão mais expostas à violência sexual ou sofreram já algum tipo de abuso e quantas delas precisam de algum tipo de tratamento. Com isso, podemos oferecer uma resposta mais adequada para esta parte da população.

Mas a principal mudança foi a tomada de consciência de que é preciso reconhecer que existem necessidades diferentes que devem ser levadas em consideração quando se organiza uma resposta humanitária e que são igualmente importantes. Hoje, planejamos os programas incluindo esses componentes. Por exemplo, já temos grupos que trabalham questões como Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) com vítimas de violência sexual; nos campos de deslocados, criam-se ambientes separados para homens e mulheres; e também colocamos iluminação nas barracas. Nas últimas operações de que participei, esses tipos de cuidados eram tomados.

Se olho pelo lado do beneficiário da ação humanitária, vejo também que há uma maior inclusão de mulheres nas decisões comunitárias. Em muitos casos, elas formam parte dos comitês de avaliação e levantam a sua voz sobre temas que lhe dizem respeito. Tanto do lado de quem recebe quanto do lado de quem planeja e atua, acho que a inclusão da mulher permitiu uma visão mais holística, uma leitura mais completa sobre as diferentes necessidades e vulnerabilidades que existem, contribuindo assim para uma resposta mais eficaz na questão de diversidade e gênero.

 Peru. Graziella Leite Piccoli em ação do programa de Restabelecimento de Laços Familiares (RLF). Foto: Arquivo pessoal

E em relação a mulheres que trabalham em organizações humanitárias? Você encontra alguma resistência por ser mulher?

Às vezes, as pessoas me perguntam: ao ser mulher em certos países, as pessoas lhe respeitam, seus interlocutores confiam em você ? Eu mesma não cheguei a viver situações nas quais senti que a minha presença era totalmente desconsiderada por ser mulher. Digamos que em algumas circunstâncias não seria a preferência por parte da minha contraparte, mas não cheguei, por isso, a ser completamente ignorada.

Pude alguma vez me sentir meio "a última da fila", mas pelo menos ainda me deixaram na fila! Por outro lado, em algumas situações, justamente por ser mulher, você tem o acesso que os homens não têm. Por exemplo, é o caso de alguns trabalhos que fazemos na área de educação em higiene, ensinando as mulheres os cuidados básicos, indo às suas casas e sentando-nos à mesa com elas; isso não seria permitido aos colegas homens. O mesmo ocorre nos trabalhos em salas de parto em alguns contextos onde são as enfermeiras e médicas mulheres que atuam.

Nos últimos anos, eu vejo que mesmo nesses contextos onde há uma exposição menos visível – ou permitida – da mulher, nós temos uma aceitação maior. Conseguimos manter o diálogo e os trabalhos são feitos. Isso se deve também ao fato de que há um progresso geral na visão sobre a mulher e no lugar que ela vem ocupando na sociedade. É um processo que avança a passos lentos, mas avança.

Na minha carreira, não encontrei muitas barreiras. Os problemas que tive não foram necessariamente porque sou mulher, mas pelas circunstâncias próprias do conflito.

E em geral, como você vê a situação das mulheres no CICV?

O CICV trabalha para a igualdade de gênero dentro da organização. Já temos paridade na Diretoria em Genebra. Há muitas mulheres em posições de responsabilidade dentro do CICV.

O acesso que eu tenho na posição de manager corresponde ao acesso que eu deveria ter. Mas estou me referindo às posições que tive como chefe adjunta nas Filipinas e aqui na Tailândia desde ano passado, países onde não existem grandes dificuldades operacionais e nem de gênero. Mas quando vejo que em delegações de grande porte como na Síria, no Iraque, no Egito, e antes no Afeganistão, temos ou tivemos mulheres que foram chefes de delegação, que levam a cabo grandes operações e lideram as discussões com as autoridades de alto escalão, eu vejo que não chega a haver problemas; as portas não se fecham para determinados acessos que deveríamos ter porque nós somos mulheres. Claro que esta é uma opinião muito pessoal.

O que diria para brasileiras que têm vontade de fazer trabalho humanitário?

Juntem-se a nós para continuarmos marcando a importância e a relevância de haver mulheres nesse trabalho! Tenho muito orgulho das amigas que fiz nesse meio assim como de ver colegas desenvolvendo um trabalho de campo dedicado e altamente profissional. Engenheiras, médicas, analistas de informática, enfermeiras, juristas, cientistas políticas, jornalistas e tantas outras mulheres competentes fazem parte do CICV nas situações mais diversas e nos lugares mais vulneráveis de hoje. Venham ser uma delas!

É importante lembrar que ser profissional humanitário é uma profissão. Dentro do CICV, tomamos todas as precauções, todas as medidas cabíveis para evitar e minimizar os riscos aos quais às vezes pode se expor. Temos profissionais que se ocupam disso. E temos também treinamentos sobre como se trabalhar em diferentes situações.

Por último, tenham sempre em mente as pessoas pelas quais você decidiu fazer este tipo de trabalho. São elas que irão manter viva a motivação e a convicção de que vale a pena.

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