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“Isso nunca acontece aqui”: violência sexual e de gênero contra homens, meninos e pessoas LGBTQI+

Além das mulheres e meninas cisgênero, é preciso fazer mais pela proteção de homens, meninos e/inclusive pessoas LGBTQI+ que correm risco de sofrer violência sexual e de gênero (VSG) em contextos humanitários, afirma um novo relatório elaborado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha junto da Cruz Vermelha Norueguesa.

"Muitas agências humanitárias não só fazem vista grossa para as necessidades das mulheres, como também desconsideram por completo os homens, meninos e grupos de minoria sexual enquanto sobreviventes de violência sexual e de gênero ao conduzir avaliações de necessidades, discussões com as comunidades, coletas de dados e programas de resposta humanitária e comunitária de acompanhamento.(ii)"

A violência sexual e de gênero (VSG) contra mulheres e meninas em contextos de conflito armado, detenção ou crises humanitárias é uma questão abominável, excessivamente comum e bem documentada. Mas elas não são as únicas afetadas.

Agora, está aumentando o reconhecimento da diversidade de vítimas/sobreviventes de violência sexual e de gênero em contextos de conflito e outras emergências humanitárias.

Um novo relatório intitulado "That never happens here": Sexual and gender-based violence against men, boys and/including LGBTIQ+ people in humanitarian settings" ("'Isso nunca acontece aqui': violência sexual e de gênero contra homens, meninos e/inclusive pessoas LGBTQI+ em contextos humanitários", em tradução livre) põe em evidência o impacto avassalador e a prevalência da VSG contra outros grupos negligenciados.

O relatório faz um apelo para que haja um melhor entendimento dentro da comunidade humanitária e uma melhoria nas respostas às necessidades de homens, meninos e/inclusive pessoas LGBTQI+ que são vítimas/sobreviventes de VSG.

Ele também estabelece uma série de recomendações — junto com um chamado à ação — para os Estados, as agências humanitárias e o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.

"As consequências da violência sexual e de gênero para qualquer pessoa, independentemente de gênero, idade, orientação sexual ou identidade e expressão de gênero, entre outros fatores de diversidade, são profundas e devastadoras.
Elas incluem as dimensões física, psicológica e socioeconômica e causam danos imediatos e no longo prazo."

O relatório chama a atenção para várias experiências não divulgadas e necessidades não atendidas. Estes são alguns exemplos das questões abordadas:

  • É provável que o impacto e a prevalência de VSG contra homens e meninos em contextos de conflito armado, dentro do contexto de migração e detenção, venha sendo amplamente subestimado.
  • Devido a normas sociais e culturais ligadas à masculinidade, existem estigmas de gênero persistentes associados a vítimas/sobreviventes de VSG do gênero masculino.
  • Fatores de diversidade como a orientação sexual e a identidade e expressão de gênero podem influir no grau de risco ao qual uma pessoa está sujeita. Por exemplo, mulheres e meninas transgênero (a quem o gênero masculino foi atribuído ao nascer, mas que não se identificam como homens ou meninos) podem ser alvos específicos de VSG como uma medida para "corrigir" sua identidade de gênero.
  • Um homem gay que esteja em um contexto em que qualquer orientação sexual diferente da heterossexual configure um motivo para detenção pode estar sujeito a um risco maior de VSG, inclusive durante a detenção.
  • Os meninos em contextos humanitários estão sujeitos a uma variedade de situações de VSG. Eles podem ser expostos a violência sexual por parte de portadores de armas, abusados ou explorados sexualmente por trabalhadores humanitários ou membros das forças de manutenção da paz, ou traficados para fins de exploração sexual.

Embora a violência sexual contra homens, meninos e/inclusive pessoas LGBTQI+ seja proibida pelo Direito Internacional Humanitário (DIH), esse nem sempre é o caso na legislação nacional dos diferentes países.

É por esse motivo que o relatório faz um apelo para que os Estados empreendam ações coordenadas para desenvolver legislações nacionais inclusivas e não discriminatórias que proíbam a VSG e garantam que todas as vítimas/sobreviventes de VSG tenham acesso à justiça.

Outras recomendações contidas no relatório fazem um apelo para que os Estados, o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho e outros atores humanitários:

  • estabeleçam e mantenham programas e serviços que incluam homens, meninos e/inclusive pessoas LGBTQI+ que são vítimas/sobreviventes de VSG;
  • tratem de atitudes nocivas manifestadas por prestadores de serviços por meio de iniciativas de capacitação e conscientização.

"Da mesma forma que acontece com as mulheres e meninas, os homens, meninos e pessoas LGBTQI+ sobreviventes de VSG precisam de uma resposta multissetorial e centrada nos sobreviventes, que inclua o acesso a serviços médicos, psicossociais e de aconselhamento para tratar do trauma que essas pessoas sofreram, dentre os quais estão os serviços de saúde mental, sexual e reprodutiva", afirma May Maloney, chefe da equipe do CICV que trata da questão da violência sexual.

"Respostas judiciais e ligadas à garantia da segurança, disponibilização de abrigos seguros e prestação apoio aos meios de subsistência também são fundamentais para atender às necessidades dessas pessoas."

O relatório frisa que o fato de se dar maior atenção às necessidades não atendidas de homens, meninos e/inclusive pessoas LGBTQI+ que são vítimas/sobreviventes de VSG não deve prejudicar a alocação de recursos para a questão das mulheres e meninas vítimas/sobreviventes de VSG, que ainda carecem amplamente de serviços integrais.

"That Never Happens Here" — Sexual and gender-based violence against men, boys, LGBTIQ+ people in humanitarian settings

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(i) Este relatório utiliza os termos "homens, meninos e/inclusive pessoas LGBTQI+", em inglês, em todo o documento para chamar a atenção aos grupos específicos que podem correr risco de sofrer VSG (em contextos de conflito armado, outras situações de violência e detenção, assim como antes, durante e depois de outras crises humanitárias, inclusive desastres naturais), além das mulheres e meninas, que continuam sendo afetadas desproporcionalmente pela VSG.

(ii) FICV, The Responsibility to Prevent and Respond to Sexual and Gender-Based Violence in Disasters and Crises, p. 11