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CICV realiza workshop sobre Regras de Mandela para profissionais penitenciários do Ceará

Atividade formativa reuniu mais de 50 policiais penais gestores das unidades do sistema prisional do estado em debate sobre direitos humanos e condições de trabalho

"Ninguém conhece realmente uma nação até estar atrás das grades. Uma nação não deveria ser julgada pelo modo como trata seus melhores cidadãos, mas sim como trata os piores". Nelson Mandela (1918-2013), presidente da África do Sul de 1994 a 1999, carregou no corpo as dores do cárcere: o líder do movimento contra o apartheid passou 27 anos na prisão. A Organização das Nações Unidas, em homenagem ao trabalho de "Madiba " , como Mandela também é conhecido em seu país — nomeou um conjunto de parâmetros internacionais para o tratamento de pessoas privadas de liberdade como "Regras de Mandela".

Em Fortaleza, nos últimos dias 22 e 23 de março, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) realizou um seminário-workshop com policiais penais gestores do sistema penitenciário do estado do Ceará para difundir os princípios de dignidade, humanidade e integridade nas unidades prisionais. "A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo", Nelson Mandela.

O curso de aplicação prática das Regras de Mandela reuniu mais de 50 profissionais do sistema penitenciário, entre diretores, diretores adjuntos, chefes de segurança e policiais penais. A atividade integra o conjunto de ações que o CICV iniciou nas unidades prisionais Irmã Imelda Lima Pontes e Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa (IPF), localizados no município Aquiraz, Região Metropolitana de Fortaleza. O CICV apresentou e debateu as Regras que defendem o respeito inerente ao valor e dignidade humana de todas as pessoas privadas de liberdade.

Chefe do escritório do CICV em Fortaleza com Mauro Albuquerque, secretário da Administração Penitenciária do Ceará. Foto: C. de Almeida

Chefe do Escritório do CICV em Fortaleza com Mauro Albuquerque, secretário da Administração Penitenciária do Ceará. Foto: C. de Almeida/CICV

"O CICV está em Fortaleza para apoiar na mitigação das consequências da violência armada, essa é a nossa missão mais importante na cidade", explica Mario Guttilla, chefe do escritório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha na capital cearense. "Nós visitamos dois presídios, conversamos com pessoas privadas de liberdade de maneira confidencial para melhorar as condições de detenção e para transmitir também as necessidades encontradas para as autoridades responsáveis. Assinamos um acordo de cooperação com o Governo do Ceará em 2020 e começamos a fazer visitas em 2021. Nosso objetivo é apoiar ainda o poder público para melhorar esse cenário por meio de um diálogo contínuo de colaboração técnica", complementa.

A atividade abordou a apresentação das Regras de Mandela e dos Pincípios Fundamentais; a aplicação dessas diretrizes em direção a estabelecimentos prisionais mais humanos e a importância da segurança dinâmica para penitenciários; refletiu sobre uma abordagem diferenciada a grupos em especial situação de vulnerabilidade ao encarceramento (por exemplo, mulheres e população LGBTIQA+) e também se abordou brevemente o desgaste laboral com o objetivo de aprofundar em uma sessão na próxima semana o debate sobre segurança dinâmica e a prevenção do uso da força.

"É importante que os policiais penais se orientem no seu trabalho com as Regras de Mandela porque é uma forma de ampliar a capacidade de trabalhar com humanidade e integridade", afirmou o assessor regional do CICV para sistemas penitenciários, Alejandro Marambio. "Esse seminário é importante porque eles não têm esse tempo para refletir suas ações enquanto estão trabalhando, executam muitos procedimentos o tempo todo. É um momento de reflexão, de analisar as condutas e promover mudanças conjuntamente. O objetivo é fortalecer as capacidades de equipe.", adiciona.

Motivação

A diretora da Unidade Prisional Irmã Imelda Lima Pontes, Ilana Ferro, celebrou o espaço de trocas. "No nosso cotidiano, as nossas práticas no dia a dia nos fecham muitos ambientes de formação. Um momento como esse em que a gente dá uma pausa na nossa rotina e vem ouvir um pouco das práticas das Regras d Mandela, trocar experiências entre nós e conhecer as vivências em outros países é muito válido, dá ânimo e motivação para seguirmos o nosso trabalho cada vez mais humanitário, sem estar com um olhar discriminatório sobre o interno que está recolhido — isso a Polícia já fez, nossa missão é garantir tanto um ambiente saudável quanto condições plenas para o interno se ressocializar e voltar melhor para a sociedade. Enquanto policiais penais, temos como missão assegurar essas condições", assegura.

"Na hora que a gente identifica o perfil do interno e a tipificação criminal que ele cometeu, faz os devidos encaminhamentos (psicológico, educacional, laboral, religioso) e alinha com a equipe multidisciplinar na unidade para conseguir assegurar que o recluso seja atendido nas mais diferentes vertentes. Às vezes, os internos não têm quem os encoraje a falar o que os incomoda porque temem retaliação, mas conseguem conversar com o CICV com a privacidade resguardada. Essa troca de experiência é riquíssima. Esse caráter humanitário melhora a qualidade de vida da pessoa que está recolhida e não pode ser submetida a um tratamento degradante", pontua Ilana. A Unidade Prisional Irmã Imelda Lima Pontes conta com 64 servidores e 200 internos atualmente.

Para Lílian Ribeiro, policial penal, chefe de segurança e disciplina no Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa (IPF) e profissional da área há 14 anos, é urgente a reflexão sobre direitos humanos nos cárceres. "As ações vão muito além do que a gente pode fazer dentro do sistema, vão desde a necessidade de políticas públicas, mas é certo que a pessoa reclusa merece dignidade durante o período em privação de liberdade — o que geraria também, para mim, um trabalho melhor, mais tranquilo e mais seguro".

Gestores e agentes penitenciários em recebem certificado do workshop sobre a aplicação prática das Regras de Mandela. Foto: C. de Almeida/CICV

Gestores e agentes penitenciários em workshop sobre as aplicação prática das Regas de Mandela. Foto: C. de Almeida/CICV

Já Edson Filgueira, diretor da Unidade Prisional Desembargador Adalberto de Oliveira Barros Leal (Caucaia), ressalta as mudanças que essa ação do CICV promove: "Nós somos cientes da importância que o Comitê Internacional d Cruz Vermelha exerce a nível mundial e essa conversa sobre as Regras de Mandela é fundamental porque a gente tem noção da teoria pela formação e a prática no dia a dia. O sistema prisional é um trabalho muito difícil do princípio ao fim, ele não dá essa trégua em nenhum momento. Cabe ao Executivo, através da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado do Ceará, mostrar aos internos qual é o objetivo da ressocialização. Esse trabalho está dando frutos e isso é gratificante".

Colaboração coletiva 

Éder Dias da Silva, chefe de segurança e disciplina na Penitenciária Industrial Regional de Sobral, define o trabalho dos policiais penais com um neologismo que usam entre eles: "querência". "Nós, policiais penais, utilizamos esse termo para falar o que é necessário para o serviço fluir — é querer fazer. É justamente esse operacional que, dentro das dificuldades, encontra meios de fazer a missão funcionar. Para nós, conhecer o lado humanitário que está diretamente ligado à nossa atividade é fazer com que os policiais penais se conscientizem coletivamente".

A coordenadora adjunta de Proteção do CICV e responsável pelo programa em favor das pessoas privadas de liberdade, Patricia Badke, ressalta que a atividade realizada neste mês de março é o marco inicial de um projeto maior em colaboração com a Secretaria da Administração Penitenciária do Ceará, a Campanha Mandela.

"A campanha é sobre a história de Nelson Mandela e a ideia é realizar várias atividades nas unidades neste marco, trabalhando junto com a população privada de liberdade e também com o pessoal penitenciário, sensibilizando e mobilizando sobre o respeito aos direitos humanos de forma geral, além da necessidade de garantir um tratamento mais digno, mais humano, além de melhorias das condições, focado na reintegração social da população penal. Acreditamos que educação e trabalho conjunto conseguem apoiar inclusive para melhorar o convívio e o bem estar de todos nas unidades. A campanha se encerrará no dia 18 de julho, Dia Internacional Nelson Mandela, com uma atividade de comemoração".

No final do seminário-workshop, o secretário da Administração Penitenciária do Estado do Ceará, Mauro Albuquerque, sinalizou os rumos da parceria com o CICV: "É necessário tudo que o CICV agrega. É muito importante quando o policial penal sabe qual é sua finalidade. A gente só cresce através de um debate saudável e honesto e tudo que há nas Regras de Mandela valoriza o ser humano. Nosso trabalho é guiado por ter isso na ponta da língua e na prática diária", finaliza.