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As convicções religiosas de Henry Dunant, fundador do CICV

Henry Dunant é uma figura histórica famosa, principalmente conhecido como um dos cofundadores do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, iniciador da primeira Convenção de Genebra de 1864 e recebedor do primeiro Prêmio Nobel da Paz em 1901. A sua tumultuada vida foi cheia de paradoxos e profundamente influenciada pela sua fé cristã.

Esta contribuição visa destacar este aspecto da sua vida e mostrar o papel hipotético da fé de Dunant na criação da Cruz Vermelha. Sintetiza o conteúdo de um capítulo publicado recentemente em um livro dedicado às fraturas do protestantismo no oeste da Suíça durante o século XIX.

Juventude, fé e compromisso cristão

Henry Dunant nasceu em 1828 e foi criado em Genebra, em uma família cristã, para não dizer calvinista. A sua tia, Sophie, cuidava da sua educação religiosa fora da Igreja Protestante oficial de Genebra. A família Dunant fazia parte do chamado Réveil — o "Despertar" — um movimento que visava restaurar o protestantismo puro. O jovem Dunant foi profundamente influenciado por vários clérigos locais e pelos princípios fundamentais da fé do Despertar: leitura da Bíblia, milenarismo, proselitismo e caridade ativa — um bom cristão tinha que se comprometer com atividades de caridade. Este ambiente desempenhou um papel importante em forjar a sua fé e o seu compromisso de caridade.

As ideias do Despertar se manifestaram em muitas atividades de Dunant quando ele se tornou um jovem adulto. No verão de 1847, Dunant viajou para os Alpes com três amigos. Inspirados por esse esforço, decidiram criar a "Associação das Quintas-feiras" (ou "Leituras das Quintas-feiras"), um encontro semanal para rapazes de Genebra, durante os quais eles poderiam se socializar e discutir a Bíblia. No mesmo ano, várias personalidades fundaram uma filial local da Aliança Evangélica. Henry Dunant foi secretário aí de 1851 a 1859.

Em 1844, a primeira Associação Cristã de Moços (ACM) foi fundada em Londres. Em 1852, Henry Dunant contribuiu para a criação da unidade da ACM em Genebra. Como "Secretário-Correspondente" da nova organização, ele dedicou muita energia para recrutar novos membros e promover a ACM em toda a Europa. As suas viagens e esforços de rede renderam frutos quando ele convenceu a unidade de Paris a organizar a primeira Conferência Mundial de ACM em 1855. Na ocasião, os delegados decidiram unir forças em uma federação, a Aliança Mundial de ACMs.

Essas diferentes iniciativas ilustram o compromisso evangélico e a caridade ativa de Dunant. Muitos o consideram uma figura proeminente na história da ACM. No entanto, a sequência de eventos que levou à fundação da Cruz Vermelha não estava diretamente relacionada à religião.

Solferino

Em 24 de junho de 1859, Henry Dunant estava no norte da Itália, tentando encontrar o imperador Napoleão III para discutir várias questões relacionadas aos negócios que dirigia na Argélia. No mesmo dia, tropas francesas e austríacas travaram a famosa batalha de Solferino, uma das mais mortíferas do século 19, que resultou no ferimento, morte e desaparecimento de mais de 40 mil pessoas. Dunant não teve sucesso em encontrar Napoleão III e provavelmente deve ter chegado assim que a batalha acabou, mas testemunhou as suas terríveis consequências, incluindo milhares de soldados feridos e moribundos sem alívio ou atendimento médico. Abalado por tanto horror e sofrimento, passou vários dias na pequena cidade de Castiglione, onde ajudou a população local a cuidar das vítimas da batalha.


Nos meses que se seguiram, Henry Dunant permaneceu profundamente atormentado por essa experiência traumática. Ele decidiu escrever seus sentimentos em um livro publicado em 1862, Lembrança de Solferino. O livro continha duas ideias inovadoras:

1) "Nos períodos de paz e tranquilidade, não seria possível criar sociedades de socorro com vistas a oferecer cuidados para os feridos em tempos de guerra, por parte de voluntários perfeitamente qualificados, zelosos e devotados?"

2) "Algum princípio internacional, sancionado por uma Convenção de caráter inviolável, a qual, uma vez acordada e ratificada, possa constituir a base para as sociedades de socorro dos feridos".

O livro tornou-se imediatamente um grande sucesso em toda a Europa e as propostas de Dunant despertaram o interesse de personalidades locais em Genebra. Em 17 de fevereiro de 1863, sob os auspícios de uma sociedade filantrópica de Genebra, os cinco membros fundadores do CICV se encontraram pela primeira vez. Em outubro desse mesmo ano, organizaram uma conferência internacional que levou à criação da Cruz Vermelha e também do Movimento do Crescente Vermelho. Poucos meses depois, em 22 de agosto de 1864, a primeira Convenção de Genebra para a Melhoria das Condições dos Feridos das Forças Armadas em Campanha foi assinada em uma conferência diplomática convocada pela Suíça. Menos de cinco anos após a experiência traumática de Solferino, Dunant e os outros fundadores do CICV conseguiram estabelecer o que se tornaria o movimento humanitário mais significativo do mundo e assentar uma das primeiras bases do Direito Internacional Humanitário contemporâneo (DIH).

O papel da fé religiosa na criação do CICV

Como evocado em Lembrança de Solferino, Dunant pretendia resolver "uma questão de uma importância enorme e mundial, tanto do ponto de vista humano como cristão". A influência da sua fé na criação da Cruz Vermelha é aparente. O seu compromisso e esforços se integram perfeitamente com a sua visão de atividades de caridade influenciadas pelo Despertar. No entanto, a fé também influenciou os outros quatro membros fundadores do CICV?

Gustave Moynier, muitas vezes visto como o cofundador do CICV e presidente por mais de quatro décadas, veio de uma rica família protestante que fez parte do Despertar. O seu pai fundou a União Protestante de Genebra, cujo objetivo era a defesa contra a "invasão" dos católicos em Genebra. O próprio Moynier publicou uma biografia do apóstolo Paulo e vários artigos em revistas cristãs. O Dr. Louis Appia era filho de um clérigo também profundamente influenciado pelo Despertar. Da mesma forma, o Dr. Théodore Maunoir era membro da União Protestante e o General Guillaume Henri Dufour, o primeiro presidente do CICV, era membro da Igreja Protestante.

Dunant, Moynier, Dufour, Appia e Maunoir vieram todos da mesma pequena elite burguesa conservadora de Genebra. Expulsa do poder político pela política radical local, a religião foi um dos poucos refúgios restantes para preservar os seus valores e a coesão ideológica. Os historiadores concordam que a fé, especialmente a do Despertar, desempenhou um papel proeminente na criação da Cruz Vermelha. Os fundadores agiram como cristãos protestantes, inspirados pela necessidade de viver de acordo com uma fé religiosa pessoal sincera e um forte compromisso com os ideais da caridade.

No entanto, o cristianismo foi um dos vários fatores que explicam o seu compromisso com o projeto da Cruz Vermelha. A sua homogeneidade social e redes sociais pré-existentes sem dúvida facilitaram a sua colaboração, enquanto a ambição pessoal de Dunant e Moynier em particular também explica em parte a energia que dedicaram a ela. Ambos queriam deixar a sua marca no mundo. O acaso, é claro, também desempenhou um papel, e Dunant talvez nunca tivesse tido essa ideia singular se não tivesse um negócio na Argélia ou se tivesse chegado a Solferino alguns dias antes ou depois.

Conclusão: inspirado pela fé, mas laico na sua realização

Embora as crenças cristãs tenham desempenhado um papel no desencadeamento e inspirando o início do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho e das Convenções de Genebra, a sua realização real foi, no entanto, laica e não denominacional. A Convenção de Genebra de 1864 consagrou a proteção de todos os feridos e pessoal médico, independentemente da sua afiliação, e os conceitos de imparcialidade e neutralidade continuam definindo o Movimento, que não pode tomar partido nas hostilidades em momento algum.

No entanto, Dunant e os outros fundadores do CICV tinham uma visão universalista e queriam que a Cruz Vermelha fosse a mais ampla e abrangente possível, e sabiam que o desenvolvimento e o sucesso do Movimento da Cruz Vermelha só poderiam ser alcançados em um base laica. No final das contas, foi uma escolha sábia e a história provou que estavam certos. A Cruz Vermelha estava agindo rapidamente em conflitos em países que não eram cristãos, incluindo aqueles onde a religião era um problema. A criação do Crescente Vermelho no final do século 19 é apenas um exemplo de como o Movimento se adaptou a essa necessidade e não foi denominacional.

Isso não significa que as religiões tenham se desconectado do desenvolvimento do Movimento. Desde o século 19, o CICV destaca a universalidade dos valores da Cruz Vermelha, ao explorar convergências com tradições religiosas, como o islamismo, o hinduísmo e o budismo. A fé pessoal sem dúvida inspirou gerações de funcionários do CICV e voluntários das sociedades nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho no seu trabalho. No entanto, a sua fé e crença permaneceram enraizadas nas suas esferas privadas e o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho não age em nome de Deus, mas em nome da humanidade.

Henry Dunant foi, sem dúvida, um cristão protestante comprometido, influenciado pela fé do Despertar, assim como pela dos seus antepassados. A religião desempenhou um papel importante na sua vida e alimentou o seu apetite por atividades de caridade. Apesar de muitos fracassos e anos de sofrimento, a sua fé pessoal evoluiu para o milenarismo e o misticismo, paradoxalmente, a sua maior conquista, a revolução que o transformou em figura histórica, foi laica..

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Autor:

Cédric Cotter é pesquisador do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Trabalhou para o CICV em vários cargos na sede entre 2009 e 2012, antes de ingressar na Universidade de Genebra como pesquisador associado de 2012 a 2016. É autor de cerca de 20 publicações sobre vários assuntos relacionados à história da ação humanitária, a Primeira Guerra Mundial e o Direito Internacional Humanitário. Tem doutorado em História pela Universidade de Genebra.

Artigo publicado originalmente em nosso blog Humanitarian Law & Policy.

Comitê dos cinco fundadores da Cruz Vermelha: Louis Appia, Guillaume-Henri Dufour, Henry Dunant, Théodore Maunoir, Gustave Moynier