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Brasil: Mulheres são essenciais na ajuda humanitária

Campo de deslocados em Myanmar, 2014. Foto: Arquivo pessoal.

Enfermeira obstétrica, especialista em Pneumologia Sanitária, a brasileira Ana Lúcia Bueno participou de missões humanitárias no Afeganistão, Iêmen, Sudão do Sul e Myanmar. Hoje é coordenadora adjunta do Departamento de Saúde na Delegação Regional do CICV no México. Para o Dia Internacional da Mulher, Bueno nos contou um pouco sobre como é trabalhar para organizações humanitárias e como é feita a atenção a mulheres em locais onde há conflito armado ou violência

Como você viu a ajuda humanitária mudar em relação às mulheres nesses 10 anos de trabalho?

Como eu trabalhei em contextos muito diferentes, varia muito. Há lugares que há muita necessidade de realizar um trabalho específico com mulheres, em outros as necessidades são mais gerais. A ajuda humanitária, no fim das contas, é olhar para o ser humano de forma geral, sem distinção de sexo, cor de pele e religião. Mas existem questões que são bem específicas direcionada às mulheres. Por exemplo, quando há um conflito armado ou violência, e as mulheres precisam de atenção obstétrica, é bastante complicado. Nestas situações é importante sensibilizar os hospitais que estão trabalhando em áreas de conflito para receber esses casos, e garantir que tenham insumos e recursos humanos suficientes para esse tipo de assistência.

Como você acha que as mulheres ajudam a promover mudanças dentro do contexto humanitário?

As mulheres fazem parte deste contexto, e elas sofrem muito de diferentes formas. Elas sofrem as consequências físicas da violência em si, e sofrem ao ter que ver os seus filhos indo para a linha de frente. A mulher tem um papel extremamente importante na questão humanitária, porque ela tem a tendência de ter uma visão mais global, mais humana. A mulher acaba assumindo um papel de manter as famílias unidas em uma situação muito difícil. Elas também promovem muitos grupos, grupos de auto-ajuda, grupos comunitários. A mulher sempre está pensando em ideias para seguir a vida, para tocar adiante. Ela tem essa tendência natural de auxiliar, de estender a mão e se organizar nesse sentido. Esse é um fator bem importante.

O que aprendeu das mulheres com quem trabalhou na Delegação do México?

Os latino-americanos, mesmo ao enfrentar grandes dificuldades, seguem em frente porque têm um objetivo. Eles sempre têm uma alegria muito grande de viver, o que reflete na sua maneira de trabalhar. Na Delegação Regional do México, a gente trabalha temas de migração e com comunidades afetadas pela violência, tentando minimizar as consequências humanitárias causadas por esta. Apesar das dificuldades, as mulheres seguem em frente, porque elas têm o objetivo de conseguir uma vida melhor.

No México, as mulheres também são as primeiras a se organizar para fornecer ajuda. São grupos de mulheres que tomam a frente Por exemplo, as camponesas nas comunidades movimentam a economia dos seus vilarejos. Com elas, temos projetos de saúde, de apoio a familiares de pessoas desaparecidas e de educação. Normalmente são as mulheres que assumem a coordenação das ações que serão tomadas em suas comunidades. A mulher é sempre o ponto de referência dentro da família e da comunidade. Por mais que pareça difícil a situação, elas sempre trazem consigo um otimismo muito grande. Elas mantêm a esperança, sempre buscando o melhor para sua comunidade e família. Sempre com muita força e alegria.

Em geral, como você vê a situação das mulheres no CICV?

Como delegada do CICV, nunca tive nenhum problema em nenhum local que me impedisse de realizar meu trabalho unicamente pelo fato de ser mulher. Vivi momentos que eu era a única mulher em uma delegação de mais de 130 homens e eu trabalhava como delegada de saúde, e sempre fui muito respeitada.

Existe sim particularidades culturais dentro de cada país com a questão de gênero, alimentadas por gerações, mas isso não é impedimento para que mulheres executem algum tipo de trabalho dentro do CICV.

No Iêmen, por exemplo, havia oito iemenitas cirurgiãs e enfermeiras na minha equipe que trabalhavam lado a lado com os homens e eram de uma sensibilidade extrema. Eu nunca vi o rosto dessas mulheres. Essas cirurgiãs e enfermeiras, por exemplo, só mostravam os olhos, mas elas tinham o poder de decisão dentro da equipe. Por mais que estivessem em um ambiente masculinizado, no centro cirúrgico, ali se percebia que elas tinham todo o poder de decisão, de voz, de falar o que achavam melhor para o paciente.

2012-2013, Afeganistão. Com os alunos do 1º Treinamento em Primeiros Socorros do Crescente Vermelho do Afeganistão. Foto: Arquivo pessoal.

O que diria para brasileiras que têm vontade de fazer trabalho humanitário?

A cada ano eu me preocupo mais com a questão de igualdade de gênero. A gente podia ganhar muito mais se as pessoas levassem isso realmente a sério. Para as brasileiras que querem fazer um trabalho humanitário, eu digo que se realmente é de coração, se elas querem fazer a diferença, é preciso olhar um pouco fora da caixa. O trabalho humanitário é um estilo de vida, que te confere muitas experiências intensas, certo nível de privação de uma vida "normal", mas que recompensa imensamente. Não é fácil tomar o seu lugar, mas temos que ter muita certeza do que queremos e estarmos preparados para os desafios. O que importa é a sua vontade de fazer,e fazer bem feito. Nós mulheres temos muito a colaborar com o mundo humanitário. Temos por natureza uma empatia muito grande em relação aos diferentes contextos. É um trabalho que tem muitos riscos físicos e emocionais, então é preciso uma resiliência muito forte (que se define como a capacidade de uma pessoa lidar com seus próprios problemas, vencer obstáculos e não ceder à pressão, seja qual for a situação). Eu as encorajo muito, vão em frente e não se intimidem! Eu acho muito importante a presença e a representação feminina, mesmo em contextos onde não se imaginam. Vale a pena.

Você tem alguma mensagem especial para o Dia da Internacional da Mulher?

Hoje a mulher aparece muito mais por trás das decisões, mas ela tem que ser vista como alguém que tem um papel importante dentro da sociedade em geral, como realmente é. A discriminação ainda existe e é muito forte, mas a presença da mulher tem que vir para a frente. A mulher é aquela que está tomando as decisões, que está organizando e fazendo o trabalho duro em muitos campos. No final, seu nome nem aparece. Isso às vezes incomoda, mas aos poucos vamos mudando, vendo o ser humano como ser humano. Quando começa uma guerra, quem vai unir a família e buscar um refúgio, é sempre a mulher. Ela tem o papel principal para manter uma organização dentro do caos. Como mensagem final digo a todas as mulheres que sigam fortes em seus princípios, que se unam contra a desigualdade, cada um tem sua voz e seu papel dentro da sociedade, e que cada ser humano, independente de genero, cor, religião, necesita ser respeitado e é peça fundamental para mover o mundo e fazer a diferença.