Artigo

A população civil, presa entre o medo e a angústia

Na Colômbia, os conflitos armados e a violência continuam causando impactos profundos na população civil, incluindo pessoas feridas, mortas e desaparecidas, famílias separadas, comunidades confinadas e deslocadas, crianças e adolescentes associados com portadores de armas, traumas psicológicos, temores, angústia e incerteza permanente.

Em diversos territórios do país, a população padece um sofrimento indescritível, que é agravado quando os atores armados desrespeitam as normas do DIH e de outros princípios humanitários.

Em 2022, nossas equipes no terreno documentaram 400 supostas violações do DIH e de outras normas humanitárias*, das quais mais de metade correspondia a homicídios, ameaças, violência sexual, utilização de artefatos explosivos com efeitos indiscriminados, recrutamento, uso e participação de crianças e adolescentes nas hostilidades, privações de liberdade arbitrárias e tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes, entre outras condutas graves.

Além disso, foram informados incidentes relacionados à condução das hostilidades, como casos de incumprimento da obrigação de tomar cuidados para proteger a população e os bens civis dos efeitos daquelas hostilidades pelas partes em conflito.

A presença de atores armados perto de áreas povoadas e o uso de bens civis com fins militares aumentou a pressão sobre as comunidades e seu medo de ficarem presas no meio do fogo cruzado ou de que seus espaços comunais se tornassem alvos militares.

Outras dificuldades foram acrescentadas a esse cenário complexo. No ano passado, registramos 515 vítimas de artefatos explosivos, o número mais alto dos últimos seis anos, que confirma a tendência observada por nós desde 2018. Com cada ano, esse problemática se aprofunda e com ela, a magnitude dessa tragédia humanitária.

Em 2022, documentamos 348 casos de desaparecimentos relacionados com os conflitos armados e com a violência e ocorridos depois da assinatura do Acordo de Paz, 209 deles no ano passado. Esses dados não refletem a totalidade de ocorrências que puderam ser registradas no contexto nacional, mas fornecem uma prova contundente de que na Colômbia, esse fenômeno não faz parte do passado.

Por outro lado, segundo estatísticas oficiais, no mesmo ano, o deslocamento individual afetou pelo menos 123 mil pessoas e o deslocamento em massa, outras 58 mil. Todas elas tiveram que abandonar seus lares para salvar a própria vida.

Igualmente, 39 mil pessoas ficaram confinadas pelo agravamento das ações armadas e pela presença de artefatos explosivos em seus territórios. 64 % da população confinada identificou-se como indígena e 27 %, como afrodescendente.

Fonte: Acompanhamento de supostos eventos de deslocamento em massa e confinamento. Subdireção de Prevenção e Atendimento de Emergências - UARIV

A análise dessas informações de uma perspectiva territorial demonstra que em algumas áreas, as dinâmicas do confinamento e do deslocamento têm sido constantes, ao passo que em outras, elas mudaram consideravelmente. Dois exemplos do primeiro caso são Nariño e Chocó, departamentos que, nos últimos quatro anos, têm sido os mais impactados pelos deslocamentos em massa e pelo confinamento, respectivamente.

No que tange às situações com mudanças expressivas, um bom exemplo é Arauca. Neste departamento, o confinamento aumentou 10 vezes em comparação com 2021, e o deslocamento de indivíduos passou de 763 pessoas registradas nesse ano para mais de 19 mil em 2022.

No ano passado, também continuaram os ataques contra a assistência à saúde, sendo particularmente graves os incidentes registrados nas áreas mais afetadas pelos conflitos armados e pela violência, como o assassinato de funcionários de saúde e pacientes, ameaças, violência sexual, extorsões e bloqueio de ambulâncias, entre outros. Alguns desses casos nem sequer foram informados ao sistema oficial por causa do medo das pessoas afetadas.

Outro aspecto relevante é o fenômeno do recrutamento, uso e participação de crianças e adolescentes nas hostilidades. Observamos com preocupação que atores armados estatais e não estatais continuam envolvendo menores de idade nos conflitos armados, com consequências profundas para estes, como a separação de suas famílias, a perda de seus projetos de vida, traumas psicológicos, ser vítimas de violência sexual, feridas, mutilações e mortes.

A ausência de ambientes seguros, oportunidades de vida e acesso à educação, bem como o maior controle social e o aumento da presença de portadores de armas
perto de locais povoados, aumenta a vulnerabilidade dos menores de idade a essa problemática.

Igualmente, estamos preocupados com a violência sexual que, infelizmente, continua presente no contexto dos conflitos armados. Muitas vezes, esses atos de violência são utilizados pelos portadores de armas como método de represália para gerar medo ou exibir poder e destruir o tecido social das populações. Existem muitas expressões de violência sexual além do estupro, como o assédio sexual ou a nudez forçada, com consequências devastadoras para as vítimas, as famílias e toda a comunidade.

No entanto, a maioria dos casos não é reportada pelo medo da revitimização ou pela culpa ou vergonha que as pessoas afetadas podem experimentar. Os obstáculos para denunciar casos de violência sexual limitam o acesso da vítima ao atendimento até 72 horas depois da ocorrência, mesmo em casos de emergências médicas com risco de morte para a vítima.

Todos esses elementos revelam a complexidade do atual contexto, onde as dinâmicas dos conflitos armados, a conduta dos portadores de armas e a magnitude das consequências humanitárias podem variar expressivamente de uma região a outra.

Em 2022, a disputa territorial em várias regiões do país se intensificou, piorando diversos problemas e aumentando o risco para a população civil, sendo que as comunidades tiveram que enfrentar não apenas as consequências diretas dos confrontos (confinamento, deslocamento em massa, presença de artefatos explosivos, danos a bens civis etc.), mas também a pressão de atores armados que, em várias ocasiões, acusaram as comunidades de pertencer, auxiliar ou favorecer uma parte no conflito pelo simples fato de morarem no território e ficarem presas em meio ao confronto armado.

Já em outros casos, durante alguns meses do segundo semestre do ano, os enfrentamentos entre o Estado colombiano e os grupos armados diminuíram, reduzindo o impacto direto das hostilidades e levando um pouco de alívio à população. No entanto, a situação das comunidades naqueles territórios continua sendo complicada, pois em alguns lugares os portadores de armas ainda mantêm o controle social e, por conseguinte, as consequências humanitárias potencialmente decorrentes desse fenômeno, como ameaças e diferentes tipos de abuso.

De acordo com a nossa atual classificação jurídica, com base nos critérios do DIH, há sete conflitos armados não internacionais em andamento na Colômbia. Três deles são entre o Estado colombiano e os seguintes grupos armados: o Exército de Liberação Nacional (ELN), as Autodefesas Gaitanistas da Colômbia (AGC) e as antigas FARC-EP que atualmente não respeitam o Acordo de Paz.

Os quatro conflitos restantes são entre grupos armados, um entre o ELN e as AGC e os outros três, entre as FARC-EP que atualmente não respeitam o Acordo de Paz e a Segunda Marquetalia, os Comandos da Fronteira – Exército Boliviariano e o ELN, respectivamente. Esse último conflito foi classificado recentemente com base na observação e na análise das hostilidades entre ambos os grupos e nas suas consequências humanitárias durante os últimos dois anos.

As dinâmicas variáveis do contexto territorial, a reconfiguração dos atores armados não estatais, a deterioração da situação humanitária e a pouca presença das instituições estatais, um problema histórico nas áreas mais afetadas pelos conflitos armados, revelam múltiplos desafios no plano humanitário e apresentam um cenário complicado no que tange às condições de vida e segurança da população civil.

No entanto, é preciso apontar que os números e a análise apresentados no presente relatório refletem a realidade observada por nós durante 2022. Considerando a situação dinâmica em andamento na Colômbia, esse panorama pode mudar.

Classificação dos conflitos armados

Por que o CICV classifica os conflitos armados?

O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) classifica conflitos armados apenas para cumprir seu propósito humanitário, que inclui a realização de suas funções conforme estabelecido nas Convenções de Genebra, seus Protocolos Adicionais e os Estatutos do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, a promoção do respeito pelo DIH entre as partes e a garantia de proteção e de assistência às vítimas daqueles conflitos.

Quais critérios o CICV observa para classificar um conflito armado como não internacional?

O CICV baseia-se no DIH, que estabelece dois critérios para que uma situação de violência seja classificada como conflito armado não internacional: os respectivos grupos armados devem demonstrar um nível suficiente de organização e as hostilidades entre as partes devem alcançar um grau mínimo de intensidade. Ambos os critérios devem ser observados; o CICV realiza uma análise técnica e objetiva de seu cumprimento com base nas informações coletadas diretamente nos territórios.

O DIH leva em conta a motivação de um grupo armado na sua classificação como parte em um conflito armado não internacional?

A motivação de um grupo armado – seja política, econômica, religiosa, étnica ou outra – não é um requerimento ou elemento de análise para sua classificação como parte em um conflito armado não internacional nem para a aplicação do DIH. Além disso, a aplicação do DIH por causa da existência de um conflito armado não internacional não outorga um status especial aos grupos armados ou seus membros. Nesse sentido, o DIH não permite nem impede Estados de negociarem com grupos armados.